
Já todos ouvimos a notícia de que o Papa Francisco nomeou, pela primeira vez, uma mulher para chefiar um Dicastério do Vaticano. É uma notícia histórica, que consolida a posição do Papa como aquele que mais fez para promover a presença feminina em lugares de chefia na Curia romana.
A missão da Actualidade Religiosa é não só trazer-vos as mais recentes notícias de âmbito religioso, mas também e ajudar a compreender os contextos e o significado de certos factos. A nomeação da Irmã Simona Brambilla é um óptimo exemplo de uma notícia que fez manchetes, mas que esconde um debate muito interessante que passará ao lado da maioria da cobertura jornalística.
Antes de mais, nada a apontar à nomeada. A Irmã Brambilla tem um percurso assinalável enquanto irmã missionária, com serviço no terreno – neste caso cheira a ovelhas moçambicanas, o que é uma notícia simpática para os lusófonos – e anos de experiência em cargos de chefia. Antes de ser nomeada como um dos primeiros sete membros femininos do Dicastério dos Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica – que é essencialmente o ministério que supervisiona a enorme quantidade de ordens e institutos religiosos que existem na Igreja Católica – foi superiora das Irmãs Missionárias da Consolata. Mais tarde tornou-se a segunda mulher a desempenhar o cargo de secretária, isto é, número dois, de um dicastério, na altura em que este era chefiado pelo cardeal brasileiro D. João Braz de Avis, e agora foi escolhida para ser a prefeita, isto é, a número um do mesmo dicastério.
O documento Praedicate Evangelium, de 2022, já tinha deixado claro que qualquer fiel pode exercer cargos de chefia na Curia Romana, portanto não há dúvidas quanto à legalidade canónica da nomeação. Contudo, existe um debate sobre a capacidade de um leigo poder exercer certas funções de governação na Igreja, havendo quem defenda que estas só possam ser legitimamente exercidas por um clérigo, uma vez que o exercício da jurisdição na tradição da Igreja – confirmada e esclarecida pelo Concílio Vaticano II – está associada às ordens sacras, nomeadamente à ordem episcopal.
Assim, não estaria em causa especificamente o facto de ser uma mulher a chefiar um dicastério, mas de ser um leigo. Isto é, o caso punha-se tanto para a Irmã Brambella como se poria para mim. Contudo, uma vez que as ordens sacras estão reservadas na Igreja Católica aos homens, as mulheres estariam, por isso, impedidas de exercer certas funções de jurisdição.
Que funções são essas? Não são todas. Obviamente, um leigo poderia desempenhar a maior parte dos cargos administrativos, mas algumas questões, como por exemplo a expulsão do estado clerical de um padre, ou a destituição de um superior de uma ordem religiosa – tarefas que competem ao dicastério a que a irmã Brambella agora preside – só seria possível para um bispo.
Basicamente existem três formas de ver esta questão do exercício de jurisdição na Igreja. Por um lado, temos uma visão absolutista: O Papa é quem manda, e todos os outros que trabalham na Curia Romana exercem poder única e exclusivamente na medida que este é delegado por ele. Logo, tanto faz ser um cardeal, um arcebispo, um bispo, um padre, uma freira, um jornalista, um mecânico ou um sofisticado robot com inteligência artificial.
Depois existe uma visão mais moderada, segundo a qual os bispos que trabalham na Cúria Romana, ainda que estejam ao serviço do Papa, exercem jurisdição própria. Para dar um exemplo, quando o Cardeal Tolentino dá uma ordem relativa a uma Universidade Católica na Austrália, é com a sua autoridade de bispo e de Prefeito do Dicastério da Cultura e da Educação. Claro que o Papa está acima dele e, como autoridade máxima na Igreja, pode reverter essa decisão. Mas isso é um recurso.
Finalmente, existe a visão radical de que todos os fiéis podem exercer todos os cargos na Igreja, ainda que não possam celebrar sacramentos. Portanto, se a irmã Brambella decide expulsar do estado clerical um padre de uma ordem religiosa em Portugal fá-lo não com poder delegado pelo Papa, mas na qualidade de Irmã Brambella, prefeita do dicastério dos Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.
Esta visão é problemática, pois tem outras ramificações. Se um leigo tem poder para tomar estas decisões, então porque é que os bispos devem chefiar as suas dioceses? Podia haver um bispo para fazer ordenações e administrar crismas, padres para os restantes sacramentos, e um CEO para tratar da administração diária da diocese. Atenção, não estou a falar da possibilidade de o bispo, ou a nível mais paroquial o padre, assegurar e contar com a ajuda de técnicos leigos especializados para tratar dos assuntos a que ele não consegue chegar, ou de que percebe menos, mas sim de o clero na Igreja passar a estar subordinado a uma burocracia de leigos.
Olhando então para aquilo que o Papa fez, podemos concluir que Francisco optou por esta visão mais radical? É aqui que a questão se torna interessante.
Existe na Curia Romana um cargo que é o de pro-perfeito. Até agora existiam apenas dois pro-perfeitos, ambos no Dicastério para a Evangelização, um para a Nova Evangelização e outro para a Primeira Evangelização. Isto porque o Prefeito do Dicastério para a Evangelização é, estatutariamente, o Papa. E como o Papa tem mais que fazer do que andar todos os dias a tratar dos temas do Dicastério, criou-se essa posição de pró-perfeito.

Agora, curiosamente, quando o Papa nomeou a Irmã Brambella, criou também a posição de pró-perfeito para o dicastério que ela agora dirige, e essa posição foi atribuída a um cardeal.
Com isto, há quem argumente que o Papa esteja precisamente a acautelar a questão da jurisdição, aceitando que para certas decisões – voltamos novamente ao exemplo de ser estranho um leigo expulsar um padre do estado clerical – ser necessário exercer a jurisdição própria de um bispo, e que nessas questões a Irmã Brambella pode socorrer-se do seu número dois.
Vai ser exactamente assim? E se for, como irá funcionar? Fica o Cardeal Ángel Fernández Artime directa e unicamente responsável por essas questões, sem ter de reportar à prefeita? Ou é um trabalho conjunto, em que a autoridade episcopal dele serve para salvaguardar qualquer dúvida sobre a legalidade da decisão?
Tudo isto pode parecer uma questão meramente académica e sem interesse real para a vida das pessoas, mas serve pelo menos para nos recordar que na Igreja as ordens sacras têm valor, são coisas reais.
Eu sou livre de me mascarar de padre e de pronunciar as palavras da consagração por cima de uma mesa com pão e vinho, mas o efeito sacramental desse embuste é zero, porque eu não fui ordenado.
O efeito real, e não apenas simbólico, dos sacramentos na Igreja, nomeadamente do sacramento da ordem, tem por isso consequências também reais, que podem conduzir, como neste caso, a situações difíceis de compreender e de deslindar. Espero, com este texto, ajudar-vos a perceber melhor a dimensão desta situação em particular.
Agradeço a interpretação para ajudar a entender este Assunto.
Mesmo assim, ponho reservas nesta decisão. Ainda me faz alguma estranheza a decisão do Papa Francisco
Obrigado
J. M. Cabral
Qual é o tema/”problema” com a possibilidade de leigos assumirem estes cargos? Não podem também ser igualmente preparados para assumir a responsabilidade? Não me parece que o facto de não poder agir sacramentalmente diminua a sua capacidade de assumir um cargo de governação na Igreja