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Era uma vez o Padre Delfim [nome fictício] que sofria de uma perturbação psiquiátrica que, entre outras coisas, o levava a ter conversas pouco apropriadas com menores. Quando ia falar às crianças da catequese, para além de outras pancas, dizia-lhes para manterem sempre as mãos em cima das secretárias, insinuando que, quando não tinham as mãos à vista era porque se estavam a masturbar. Como a Comissão Independente nos veio lembrar – e bem – esse tipo de conversa com sugestões e insinuações de natureza sexual configura abuso sexual de menores.
Perturbados com este assunto, os pais das crianças queixaram-se ao vigário. Ao fim de dois anos o vigário abriu finalmente uma investigação. O vigário apurou que o comportamento do Padre Delfim era muito grave e que ele não devia continuar em funções, ou, pelo menos, que não devia estar na presença de crianças, e transmitiu essa informação ao bispo, que abriu um processo, mas recusou-se a retirar o sacerdote de funções enquanto o processo não fosse concluído. O comportamento do Padre Delfim não só se manteve, como se agravou, porque sabendo da investigação passou a acusar as crianças de o quererem prejudicar. Tanto crianças como os catequistas da paróquia tinham medo que o Padre Delfim se tornasse violento e em pelo menos uma ocasião ele agrediu uma outra funcionária da paróquia.
No final desse ano, toda a comunidade da paróquia suspirou de alívio porque se soube que o Padre Delfim não ia regressar para a paróquia. Contudo, ficaram muito surpreendidos ao descobrir que em vez de ser afastado do ministério, ou do contacto com as crianças, o Padre Delfim afinal tinha sido mudado para outra paróquia.
Souberam então que o Padre Delfim tinha pedido uma transferência voluntária e que a Diocese tinha permitido. Quando perguntaram como é que era possível o Padre Delfim mudar assim de paróquia quando tinha um processo aberto, foi-lhes dito que o departamento que autoriza as transferências de paróquias e o departamento que estava a conduzir o processo são duas entidades distintas, que não comunicam entre si.
Mas, não cabe à diocese zelar pelos superiores interesses das crianças? Foi-lhes dito que a presunção de inocência do Padre Delfim valia mais que os testemunhos de incontáveis crianças, de diversas turmas, e de vários catequistas e outros funcionários da paróquia.
E foi assim que se permitiu ao Padre Delfim continuar a prejudicar crianças, abusando sexualmente delas enquanto a diocese nada faz para as proteger.
Felizmente esta história não é verdade. Ou melhor, é, mas não se passou na Igreja.
Afinal o padre Delfim é uma professora de ensino secundário e as paróquias são duas escolas distintas em Lisboa. Os miúdos de catequese são alunos dessas mesmas escolas, bem reais. E a diocese? Pois bem, é o Ministério da Educação, evidentemente.
Quando surgiu o relatório da Comissão Independente toda a classe política rasgou as vestes e rangeu os dentes. Importantes clérigos foram chamados a justificar os pecados da Igreja na Assembleia da República. Mas a recomendação da Comissão Independente de que o Estado crie um órgão semelhante para analisar a questão dos abusos na sociedade portuguesa em geral (Pg 449) ficou na gaveta, e vários anos depois de a Igreja ter tornado política oficial o afastamento de funções de qualquer clérigo credivelmente acusado de ter cometido abusos, até que o processo seja concluído, o Ministério da Educação, entre outros, continua agrilhoada ao passado.
Poucos como eu têm dedicado tanta atenção a seguir a questão dos abusos sexuais na Igreja. Tenho feito repetidos apelos a maior transparência por parte da Igreja, mas quando saio desta bolha e me dou conta de como outras organizações em Portugal, principalmente os públicos, lidam com esta questão, até fico com vergonha.
Isso mesmo.l!
O “double standard” é gritante. Para católicos como nós, claro que nos envergonha mais quando o pecado vem da Igreja que do Ministério.
Sempre me custou a perceber bem como é que os não-católicos, que são talvez a fatia mais mediaticamente crítica dos abusos na Igreja, não são tão ou mais exigentes para com a sua autoridade máxima, o Estado.