
O documento pode ser lido na íntegra aqui
Este não é um texto apenas do novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, Víctor Manuel Fernández, uma vez que na introdução explica que demorou cinco anos a preparar, e passou pelas mãos de diversas pessoas e muitos departamentos da Santa Sé, antes de ser publicado. É por isso um trabalho colectivo e muito maturado.
O documento é uma rejeição da compartimentalização das coisas que atentam contra a identidade humana. Isto é, existe a dignidade, e existem coisas que atentam contra a identidade, e todas as ameaças à dignidade humana são graves e merecem ser condenadas, ainda que algumas estejam na moda, ou não, ainda que algumas sejam convenientes ou não. O que a Igreja diz aqui é que não se pode condenar o aborto, mas ignorar a pena de morte; não se pode condenar a ideologia de género, mas ignorar o tráfico de mulheres. Isto é importante numa altura em que muitos temas que são caros à Igreja estão a ser usados como arma de arremesso político, por pessoas que frequentemente se “esquecem” de outros temas que também são importantes, mas não lhes convêm tando. Na apresentação do documento lê-se:
O elenco dos temas escolhidos pela Declaração não é certamente exaustivo. Os assuntos tratados são, porém, aqueles que permitem exprimir vários aspectos da dignidade humana que hoje podem ser obscurecidos na consciência de muitas pessoas. Alguns serão facilmente compartilháveis por diversos setores das nossas sociedades, outros menos. Seja como for, todos nos parecem necessários, porque no seu conjunto ajudam a reconhecer a harmonia e a riqueza do pensamento, que brota do Evangelho, acerca da dignidade.
Destaco, para começar, o parágrafo 1 do documento, que diz:
Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre. Este princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos. A Igreja, à luz da Revelação, reafirma de modo absoluto esta dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus. Desta verdade extrai as razões do seu empenho em favor daqueles que são mais fracos e menos dotados de poder, insistindo sempre «sobre o primado da pessoa humana e sobre a defesa da sua dignidade para além de toda circunstância».
E destaco por uma razão muito simples… Numa era em que todos enchem a boca com direitos humanos o Cristianismo é a única instituição global que defende este conceito. Metade do mundo ignora totalmente a dignidade dos nascituros; uma grande parte fala bastante da dignidade dos deficientes físicos e mentais, mas alegra-se com a eliminação de doenças e má-formações genéticas, como a trissomia 21, revelando crer que os seus portadores são de alguma forma menos que os que tiveram a sorte de nascer sãos; muitos – claro que não todos – os que condenam firmemente o aborto, olham para o lado ou aplaudem mesmo a pena de morte; e muitos dos que se crêem paladinos da dignidade humana apontam para os imigrantes – todos – como hordas invasoras. Portanto este primeiro parágrafo não é apenas uma repetição cansada de algo que já todos sabemos, é mesmo uma declaração de princípios rara nos nossos tempos e entre os nossos pares.
No parágrafo 7 fala-se de diferentes tipos de dignidade. Vale a pena ler, mas sublinho esta frase: “O sentido mais importante é aquele ligado à dignidade ontológica, que compete à pessoa enquanto tal, pelo simples fato de existir e de ser querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade não pode jamais ser cancelada e permanece válida para além de toda circunstância em que os indivíduos venham a se encontrar.”
O parágrafo 15 toca numa ferida importante:
Para esclarecer melhor o conceito de dignidade, é importante assinalar que ela não é concedida à pessoa por outros seres humanos, a partir de seus talentos e qualidades, de modo que poderia ser eventualmente retirada. Se a dignidade fosse concedida à pessoa por outros seres humanos, então ela se daria de modo condicionado e alienável e o próprio significado de dignidade (ainda que merecedor de grande respeito) permaneceria exposto ao risco de ser abolido. Na verdade, a dignidade é intrínseca à pessoa, não conferida a posteriori, prévia a qualquer reconhecimento, não podendo ser perdida. Em consequência, todos os seres humanos possuem a mesma e intrínseca dignidade, independentemente do fato que sejam ou não capazes de exprimi-la adequadamente.
Porque é que isto é importante? Porque implica o reconhecimento de um autor da dignidade capaz de no-la conceder, ou seja, de que existe uma autoridade – seja Deus ou não – que está para além de nós, que nos antecede e que nos é superior. Isto choca com a ideia corrente da total e radical autonomia da pessoa, que pode e deve definir-se a si mesma; um conceito igualmente perigoso a outro, também em voga noutras partes do mundo, da total e radical autoridade do Estado, que tem o direito de dar e retirar direitos pessoais que, na verdade, são intrínsecas. O Cristianismo deve sempre proclamar esta verdade e por isso será sempre tratado como incómodo por ambos estes extremos.
A partir do parágrafo 33 começa a quarta parte do documento, que fala de “algumas graves violações da dignidade humana”. Antes de abordar vários desses temas individualmente, o documento refere alguns, muito importantes, por alto, cito:
Enfim, «tudo aquilo que ofende a dignidade humana, como as condições de vida sub-humana, os encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens, ou ainda as ignominiosas condições de trabalho com as quais os trabalhadores são tratados como simples instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis». É necessário mencionar aqui o tema da pena de morte, que também viola a dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância. Deve-se, ao contrário, reconhecer que «a decidida rejeição da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a inalienável dignidade de cada ser humano e admitir que tenha um lugar neste mundo, já que se não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de partilhar comigo este planeta, malgrado o que nos possa separar». Parece oportuno também reafirmar a dignidade das pessoas que se encontram encarceradas, muitas vezes obrigadas a viver em condições indignas, como também que a prática da tortura afronta, para além de todo limite, a dignidade própria de cada ser humano, mesmo no caso de alguém culpado de graves crimes.
Olhemos agora para os tópicos tratados individualmente:
A pobreza: O documento afirma que “todos somos responsáveis, ainda que em diversos graus, desta evidente iniquidade”. Eu diria que a pobreza atenta contra a dignidade em larga medida porque impõe um limite à liberdade, sendo essa liberdade um dos maiores dons que Deus nos concedeu e uma das maiores bases da nossa dignidade.
A guerra: O documento repete vários dos pronunciamentos deste e de anteriores Papas sobre a guerra, sublinhando novamente a ideia de que estamos actualmente a viver uma terceira guerra mundial aos pedaços.

O sofrimento dos migrantes e o tráfico de pessoas: “Os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. Não só a sua dignidade é negada nos seus países,[71] mas a sua própria vida é colocada em risco porque não têm mais os meios para formar uma família, para trabalhar ou para nutrir-se.[72] Uma vez que chegam em países que deveriam ser capazes de acolhê-los, «não são considerados dignos o bastante para participar da vida social como qualquer outro, e se esquece que possuem a mesma intrínseca dignidade de toda pessoa […] Não se dirá jamais que não são humanos, mas na prática, com as decisões e os modos de tratá-los, manifesta-se que são considerados de menor valor, menos importantes, menos humanos».”
Sobre isto acrescento apenas que recentemente me foi pedido que ajudasse a divulgar um manifesto de apelo à participação dos católicos na vida política, no contexto das mais recentes eleições legislativas. Esse documento elencava uma série de áreas que os cristãos deviam ter em conta na hora de votar. Um dos pontos era a importância de boas políticas de imigração, mas também a obrigação de cristã de acolher com dignidade os imigrantes. Sei que depois da inclusão desse ponto várias pessoas pediram para que a sua assinatura fosse retirada, ou recusaram assinar. Isto dá que pensar certamente.
Abusos sexuais: Este tópico é curto, mas vai directo ao assunto e parece-me compreensivo, sobretudo na autocrítica que faz: “A profunda dignidade inerente ao ser humano na sua inteireza de alma e corpo permite também compreender por que todo abuso sexual deixa profundas cicatrizes no coração daquele que o sofre: de fato, ele se reconhece ferido na sua dignidade humana. Trata-se de «sofrimentos que podem durar toda a vida e a que nenhum arrependimento pode remediar. Tal fenômeno é difuso na sociedade, toca também a Igreja e representa um sério obstáculo à sua missão».[81] Daqui brota o empenho que a Igreja não cessa de exercitar para colocar fim a todo tipo de abuso, iniciando do seu interior.”
As violências contra as mulheres: A maioria dos tópicos é explicitado em dois parágrafos, alguns num só. Este tem direito a três. Começa por ser interessante o plural. Não é só a violência no geral, no abstracto, existem diferentes tipos de violência contra as mulheres e todas são graves. Fala-se da pobreza, da violência sexual e física, do tráfico, da desigualdade salarial, da poligamia, etc., mas fala-se também de violências que por vezes são disfarçadas de direitos, como o aborto. “Entre as formas de violência exercidas sobre as mulheres, como não citar a constrição ao aborto, que fere seja a mãe que o filho, tão frequente para satisfazer o egoísmo dos homens?”
Aborto: Apesar de ser referido no ponto acima, enquanto atentado à dignidade das mulheres, o aborto merece ainda a sua própria entrada, enquanto atentado à dignidade dos nascituros. Trata-se de apenas um parágrafo, mas é muito longo, e inclui muitas citações do magistério.
Maternidade sub-rogada (barrigas de aluguer): O enfoque aqui é a comercialização da gravidez, e por isso do bebé, dizendo que é antes de mais a dignidade da criança que é violada, embora a dignidade da mulher também o seja.
Eutanásia e suicídio assistido: Limito-me a citar o primeiro dos dois parágrafos dedicados a este tema: “Existe um caso particular de violação da dignidade humana que é mais silencioso, mas que está ganhando muito terreno. Apresenta a peculiaridade de utilizar um conceito errado de dignidade humana para fazê-lo voltar-se contra a vida mesma. Tal confusão, muito comum hoje, vem à luz quando se fala de eutanásia. Por exemplo, as leis que reconhecem a possibilidade da eutanásia ou do suicídio assistido designam-se às vezes como “leis da morte digna” (death with dignity acts). É muito difusa a ideia que a eutanásia ou o suicídio assistido sejam coerentes com o respeito à dignidade da pessoa humana. Diante desse fato, deve-se reafirmar com força que o sofrimento não faz perder ao doente aquela dignidade que lhe é própria de modo intrínseco e inalienável, mas pode tornar-se ocasião para reforçar os vínculos da mútua pertença e para tomar maior consciência da preciosidade de cada pessoa para a humanidade inteira.”
O descarte de pessoas com deficiência: “A questão da imperfeição humana comporta claras implicações também do ponto de vista sociocultural, já que em algumas culturas as pessoas com deficiência sofrem marginalização, senão opressão, sendo tratadas como “descartáveis”. Realmente, cada ser humano, seja qual for a condição de vulnerabilidade em que venha a se encontrar, recebe a sua dignidade pelo fato mesmo de ser querido e amado por Deus. Por tal motivo, deve-se favorecer o mais possível a inclusão e a participação ativa na vida social e eclesial de todos aqueles que são de alguma forma marcados pela fragilidade ou deficiência.”
Teoria de género: Este assunto merece nada menos que cinco parágrafos, o que é muito significativo. São os números 55-59, e vale a pena ler tudo. Interessantemente, começa precisamente por afirmar a dignidade de todas as pessoas independentemente da sua orientação sexual, denunciando quem a põe em causa, nomeadamente através de leis ou hábitos de repressão social ou legal. No parágrafo 56 rejeita-se as tentativas de inserir estas teorias no conceito dos direitos humanos, referindo-se a elas como “novos direitos”, quando não o são. O parágrafo 57 critica as tentativas de autodefinição de género ou sexo, que “não significa outra coisa senão ceder à antiquíssima tentação do homem que se faz Deus e entrar em concorrência com o verdadeiro Deus do amor”. O parágrafo 58 critica as tentativas de anular as diferenças entre homem e mulher, descrevendo a diferença sexual como “não só a maior, mas a mais bela e a mais potente”. Por fim, no parágrafo 59 critica-se a tentativa de impor estas ideologias na educação.
Mudança de sexo: Este é certamente um dos parágrafos que vai merecer mais atenção. Começa por reafirmar a doutrina central do Cristianismo da unicidade do corpo e da alma humana. “A dignidade do corpo não pode ser considerada inferior àquela da pessoa como tal.” O texto tem ainda o cuidado de distinguir entre as tentativas de autodeterminação de sexo/género, e os casos de má-formação real que possam existir, e que constituem uma minúscula minoria dos casos actuais de mudança de sexo, uma vez que nem se podem descrever como mudança. “Qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente se arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção. Isto não significa excluir a possibilidade que uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente, possa decidir-se por receber assistência médica com o fim de resolver tais anomalias. Neste caso, a intervenção não configuraria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido.”
Violência digital: Por fim, fala-se da violência digital, nomeadamente da facilidade com que se pode atentar contra a dignidade dos outros através dos novos meios tecnológicos, divulgando notícias falsas, ou, cada vez mais, imagens ou vídeos adulterados ou criados com inteligência artificial.
Gostei imenso do que li e concordo plenamente com o que aqui, neste documento, se afirma.
Documento magistral e muito oportuno. Julgo, no entanto, que o rigor teológico e histórico obriga a distinguir a condenação que é feita da pena de morte da condenação do aborto, eutanásia, de outras formas de opressão de carácter social, etc. Só se pode entender a recente exclusão do catecismo da Igreja Católica da admissibilidade teórica em certas circunstâncias da licitude moral da pena de morte como uma decisão pastoral para o nosso tempo e perante as circunstâncias observadas do nosso mundo globalizado com os recursos de que dispõe e que determinam uma decisão (pastoral) de instruir os fiéis no sentido de que já não se verificam circunstâncias que noutros tempos poderiam tornar lícita a consagração desta pena nos regimes jurídicos de certos Estados. Se assim não fosse teríamos de nos interrogar como poderia obrigar a consciência dos fiéis uma norma de moral como princípio absoluto para todos os tempos e lugares, contraditória com a que já vigorou e, se assim fosse possível, que poderia mais tarde deixar novamente de vigorar. Se não houver um esforço de clarificação teológica seremos confrontados com exemplos recentes, para além do texto do Catecismo da Igreja Católica antes da alteração, como por exemplo, há menos de cem anos, a concordata entre a Santa Sé e o Estado Italiano (no tempo de Pio IX) em que se previa a pena de morte para os atentados contra o Papa. Esta cláusula chocou-me bastante quando tomei dela conhecimento (na minha juventude), mas nunca me pôs propriamente teológicos, mas, mais uma vez, de carácter pastoral.
Tenho duas gralhas no comentário anterior: onde está Pio IX deveria estar Pio XI e no final onde está “nunca me pôs propriamente teológicos” deveria estar “ nunca me pôs propriamente problemas teológicos”.