
A semana passada o Grupo Vita fez chegar aos bispos a sua proposta sobre as indemnizações a pagar a vítimas de abusos sexuais na Igreja. O teor da proposta não é público, mas os bispos dizem que a vão discutir em Abril, na reunião plenária. Pelos vistos só nessa altura é que teremos novidades.
Contudo, é já aparente que se estão a formar duas importantes tendências. Uma, que considera que a Igreja enquanto instituição deve dar o passo de assumir o pagamento de indemnizações, e outra que considera que isso não faz sentido, pois implicaria aceitar uma responsabilidade que apenas devia ser imputada a quem cometeu o crime.
Aviso já que este é um tema que tem muito de jurídico, e eu não sou especialista em direito, nem civil nem canónico. Mas como o tema está longe de ser exclusivamente jurídico, julgo que posso e devo partilhar a minha opinião.
Faz sentido a Igreja pagar indemnizações?
Antes de mais, é preciso distinguir entre diferentes situações.
Poderá haver casos em que a Igreja, na pessoa do bispo diocesano, sabia dos abusos e não impediu que eles se prolongassem no tempo; ou ignorou denúncias credíveis; ou se limitou a transferir o padre de paróquia, permitindo assim que voltasse a abusar. Aqui o bispo, e eventualmente outros membros da hierarquia, têm responsabilidade directa.
Mas haverá certamente muitos outros casos – creio que a maioria – em que os bispos de nada sabiam, e em que os padres agiram por sua iniciativa e sem a existência de qualquer tipo de encobrimento.
Os que argumentam contra o pagamento de indemnizações pela Igreja institucional, alegam que tanto num caso, como no outro, não faz sentido responsabilizar a instituição por falhas individuais. Assim, quaisquer indemnizações a pagar devem ser imputadas directamente ao abusador e, se for caso disso, ao bispo ou superior hierárquico que por inacção agravou ou permitiu a situação.
É uma posição que tem sustentação, mas que depende da premissa de não ser aceitável uma organização ser responsabilizada, ou assumir voluntariamente alguma responsabilidade, por reparações a vítimas de crimes pelos quais não tem culpa directa, no sentido jurídico do termo.
E isso levanta outra questão importante. Existe algum precedente para uma organização assumir esse tipo de responsabilidades? A resposta é sim.
Sem olhar sequer para outros países, temos alguns casos em Portugal em que o Estado assumiu o pagamento de indemnizações a pessoas lesadas, sem que tivesse culpa directa da situação, ou pelo menos antes de essa culpa ser apurada. Foi o que aconteceu com o desabamento da estrada em Borba, com os incêndios de Pedrógão Grande e com a queda da ponte de Entre-os-Rios, para dar apenas três exemplos.
Estes casos são elucidativos ainda na medida em que ao assumir o pagamento dessas indemnizações, o Estado não assumiu a culpa pelo acontecimento em si, nem os tribunais entenderam esses pagamentos como um assumir de culpas nos processos que se seguiram.
A grande vantagem desta metodologia foi permitir que fosse feita alguma justiça no imediato às vítimas, ou familiares de vítimas, sem que estas precisassem de esperar muito tempo pela conclusão de processos judiciais que, no final, poderiam muito possivelmente considerar culpadas pessoas individuais, que certamente não teriam meios para fazer reparações financeiras.
A grande fraqueza do argumento de que só indivíduos é que devem ser responsabilizados em termos indemnizatórios nos casos dos abusos é o facto de ele redundar quase de certeza na impossibilidade de pagamento do que quer que seja. Se dificilmente um padre terá dezenas de milhares de euros para pagar a uma vítima de abusos, menos ainda terá um bispo que é dado como culpado de encobrir vários casos na sua diocese. Na prática, a Igreja vai chutar a responsabilidade para os indivíduos e declara-se de consciência limpa, os abusadores declaram falência e não pagam nada, ou pelo menos nada de significativo, e as vítimas ficam de mãos a abanar.
E nem chegámos ainda ao facto de haver um grande número de vítimas – se dermos como fiáveis os dados do relatório da Comissão Independente – cujos abusadores já morreram. Nesses casos quem é que paga a indemnização?
O que me parece desconcertante é que os proponentes desta ideia de que a Igreja não deve pagar não têm como não saber tudo isto e estão, por isso, propositadamente a defender uma via que deixará muitas vítimas sem qualquer reparação, não obstante todo o sofrimento causado, e os danos sofridos.
Concluindo, na minha opinião faz sentido a Igreja assumir a responsabilidade de pagar indemnizações a vítimas de abusos tanto nos casos em que a culpa assenta só sobre os ombros de quem os cometeu, como nos casos em que havia conhecimento, ou cumplicidade, de superiores.
Quem terá direito a receber?
Esta é uma questão melindrosa. Assumir que basta bater à porta e dizer que se sofreu abusos para receber uma indemnização é um convite ao desfalque e ao engano. Mas por outro lado, fazer com que o pagamento dependa de uma sentença judicial garante que a maioria das vítimas nunca recebe nada.
Explico melhor. Para além das muitas vítimas cujos abusadores já morreram, pelo que não haverá processo, há ainda muitas outras cujos processos já prescreveram, e por isso também nunca terão. Contudo, mesmo para os casos em que os alegados abusadores estão vivos, e em que o alegado crime não prescreveu, é sabido que estes são casos em que é muito difícil fazer prova, pelo que existe uma probabilidade alta de arquivamento ou de absolvição.
Sejamos claros: temos um sistema judicial que tem regras. Se um arguido é absolvido ou vê o caso arquivado, deve continuar a gozar da presunção de inocência, e ser tratado de acordo. Mas isso não nos impede de reconhecer que haverá muito provavelmente casos em que essas decisões não fazem justiça. Nesses casos fará sentido uma vítima receber uma indemnização, mesmo que o seu processo seja arquivado ou o arguido absolvido? Talvez. O importante aqui será que o organismo responsável pela avaliação dos casos esteja munido de pessoas com formação específica – na área da investigação criminal, mas também da psicologia/psiquiatria – que consigam despistar, com algum grau de certeza, a credibilidade das denúncias feitas pelas vítimas.
Resumindo, o que estou a propor é que haja uma entidade independente, mandatada pelos bispos, que possa avaliar de forma competente as denúncias, especialmente aquelas que não têm possibilidade de seguir o caminho judicial civil ou canónico, e nos casos em que forem considerados credíveis, atribuir uma indemnização extrajudicial.
Num cenário ideal, este mecanismo funcionaria também para casos não prescritos, mesmo que estejam com processo a decorrer em tribunal civil. Nestes casos a atribuição em curto prazo de tempo, só para casos considerados credíveis pela tal entidade independente, teria a vantagem de acelerar a reparação financeira, que no tribunal civil sabemos que pode ser muito, muito morosa. Contudo, seria necessário – aqui entram os juristas – salvaguardar que a atribuição da indemnização não implica um assumir de culpa pela Igreja enquanto instituição, nem do padre, ou outro agente acusado, em particular. Se o tribunal civil decretar uma indemnização a pagar pelo acusado, isso seria independente e paralelo; se decretar uma indemnização a pagar pela Igreja enquanto instituição, o valor poderia ser acertado em torno do que já tinha sido pago, transferindo apenas o valor suplementar, caso isso se aplicasse.
Quais os valores, e de onde vem o dinheiro?
Isto leva-nos a outra questão. Quanto receberia cada vítima? Penso que seria necessário haver um valor padrão, não faz sentido haver grandes flutuações de valores, embora se reconheça que há casos e casos. Um valor estipulado que estivesse em linha com indemnizações ordenadas pelos tribunais civis em casos de abuso sexual, mas com a possibilidade de aumentar em casos de contornos mais agravados, seja por prolongamento no tempo, seja por serem particularmente violentos, física ou psicologicamente.
É preciso evitar duas armadilhas. Primeiro, a ideia de que se pode pôr um preço a este tipo de sofrimento. Não, não se pode. Mas no mundo temos de usar as ferramentas do mundo, e o dinheiro é uma forma de compensar até o sofrimento incomensurável. É tudo menos perfeito, mas é o que há.
Em segundo lugar, é preciso evitar a tentação de sugar a Igreja até ao tutano, como se a justiça dependesse de levar a instituição à bancarrota. Isto tem acontecido em algumas dioceses na América. Portugal, felizmente, não tem essa cultura, nem ela faz falta. A Igreja desenvolve um trabalho social de enorme valor, que não deve ser posto em causa. Mas é precisamente por isso que fará sentido a Igreja chegar-se à frente e oferecer-se para instituir este mecanismo, podendo assim controlá-lo, em vez de esperar sentado que sejam juízes seculares a preocupar-se com a saúde financeira da cúria do senhor bispo.
Depois, temos o perigo das assimetrias financeiras das próprias dioceses. Lisboa talvez possa suportar pagar quatro ou cinco indemnizações de alto valor, mas Angra não. E é também por isso que é extremamente importante que as dioceses estejam de acordo para trilhar este caminho juntas, criando o mecanismo de avaliação em representação de toda a CEP, e abrindo um fundo para o qual todas contribuam. Aqui, como em tantos outros aspectos deste assunto dos abusos, existem exemplos a seguir de fora. É estudá-los, ver qual o que mais se adequa à realidade portuguesa, e adaptá-lo.
Confesso que este é o meu maior medo neste momento. Que os bispos reúnam em Abril para discutir a proposta que foi feita pelo Grupo Vita – sei que entretanto outros grupos de leigos comprometidos também estão a formular propostas que vão apresentar aos bispos – e que não exista consenso entre eles. O resultado seria não haver mecanismo indemnizatório nenhum, o que provavelmente levaria a que os bispos deixassem este assunto apenas para o direito civil. A consequência será menos justiça para as vítimas e uma Igreja manchada pela imagem de estar a lavar as mãos da responsabilidade moral. Temo que esta mancha leve mais tempo a apagar do que a mancha que o relatório independente e as notícias de abusos já deixaram.
Aos senhores bispos peço: não tenham medo. Assumam esta responsabilidade. Façam-no por uma questão de justiça e dever moral, não por uma questão de imagem, mas tenham noção que a questão de imagem também é importante, porque as almas que têm por missão salvar não virão perto se vos acharem um bando de gestores mais preocupados com dinheiro do que com o bem-estar das pessoas que foram magoadas por aqueles que, sob a vossa orientação, eram afinal lobos travestidos de pastores.
Sim, é verdade que no fundo, no fundo, está-se a pedir que paguem o preço de um pecado que não cometeram. Soa-vos familiar? Esperemos que sim.
A estrada, ponte e incêndios não tem paralelismo. São coisas que o Estado tem o dever de manter seguras aos utentes e recebe dinheiro dos impostos por isso.
Professores ou treinadores condenados têm escolas ou clubes que paguem indemnização às vítimas? Não me parece.
Contudo a Igreja é vista de outra maneira, de modo sobrenatural é difícil de comparar.
Convém dizer também que alguns dos alegados casos não têm como suster ou provar. Outros são inventados enviados por mail sem mais. Alguns sofridos por voluntários da Igreja. Outros foram palavras que feriram.
Não minimizo o sofrimento e injustiça que as vítimas foram sujeitas.
Não sei como resolver.