
Acaba de ser divulgada uma nota da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) sobre os processos de compensações financeiras para vítimas de abuso sexual em Portugal.
A nota surpreendeu-me pela positiva. Tem informação completa e rigorosa sobre o número de pedidos apresentados (84), o número de processos aceites (77) e as razões pelas quais cada um dos outros processos não seguiu em frente, ora porque o que estava em causa não era violência sexual, ora porque o caso não se passou em Portugal, ora porque as pessoas não compareceram às entrevistas, ou deixaram de responder a contactos.
Inclui ainda detalhes sobre a composição das equipas de instrução dos processos, e sobre a composição da comissão que agora irá entrar em funções para determinar o valor das compensações, bem como o compromisso com um prazo para a finalização dos processos: até ao final de 2025.
Por fim, o comunicado diz que, findo o processo, cada vítima terá acesso aos detalhes do seu caso particular, que justificam o valor da compensação.
Agora, o que é também interessante sobre este documento é o timing. É que ele surge a pouco mais de 24 horas de um protesto marcado pela associação que em Portugal representa as vítimas de abusos na Igreja, Coração Silenciado. O protesto está agendado para as escadas da Assembleia da República e visa precisamente contestar “o silêncio e total falta de transparência por parte da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) quanto ao desenvolvimento do processo de compensações financeiras, agravado pela ocultação a cada vítima do Parecer elaborado sobre si e a sua vida; somando ao facto de a Comissão de Fixação das Compensações Financeiras não ter sequer iniciado os trabalhos em 1 de Setembro – como prometido.”
Depois, a associação das vítimas vira-se para os organismos do Estado, que também acusa de nada terem feito para implementar a Resolução 2533 de 2024 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, segundo a qual os Estados se comprometem a combater os abusos em instituições que deviam ser locais seguros, como escolas, orfanatos e instituições religiosas.
Parece-me claro, por isso, que o timing do comunicado da CEP não é inocente. De acordo com a teoria de que a melhor defesa é o ataque, a CEP prefere ter o comunicado publicado hoje do que deixar a narrativa do lado das vítimas no ciclo noticioso, e aparecer apenas a reagir depois.
Obviamente isto é também uma reacção, mas é uma reacção preemptiva. É que desta forma a Igreja esvazia de sentido os protestos contra si e expõe ainda mais o Estado, também visado no protesto marcado para sábado.
E isto numa altura em que ainda estamos a recuperar do choque de saber que o Ministério da Educação coloca em escolas professores condenados em primeira instância por abuso sexual de menores precisamente nas escolas… De facto, o que é que o Estado fez nos últimos anos para implementar medidas de prevenção ou de combate a abusos sexuais nas instituições que gere? Já a Igreja pode apontar para trabalho efectivo.
Não estou aqui a alegar má fé a qualquer dos lados. Creio que teria sido mais inteligente a CEP ter publicado esta nota há uma semana, quando primeiro foi anunciado o protesto, e não na véspera, mas admito que não tenha sido fácil recolher todos os dados mais depressa. Ainda assim, fica aqui claramente uma imagem de opção estratégica.
Estamos a falar de estratégia e politiquice. Podia-se dizer que é o lado menos bonito destes processos, mas esse lado menos bonito é mesmo o sofrimento de que são vítimas as pessoas que sofrem abusos e, porque também existem, as que são acusadas injustamente.
O processo das compensações está, pelos vistos a decorrer. Quando forem anunciados os valores é certo que haverá queixas de que são insuficientes, mas é evidente que nenhum valor será algum dia suficiente para sarar tamanha ferida. Pelo menos está a fazer-se alguma coisa. Se puder ser feita de forma transparente, independente e célere, melhor.