
De quando em vez, depois de escrever sobre a guerra na Ucrânia, recebo emails de leitores a criticar a minha postura pró-ucraniana. Como já respondi a pelo menos um deles, não só não rejeito essa etiqueta, como a ostento com orgulho. Neste conflito entre a Ucrânia e a Rússia só 100% pró-ucraniano, torço pela vitória e restauração da integridade territorial da Ucrânia e encaro o actual regime russo como uma ameaça existencial à Europa e à paz no mundo.
Penso que com isto deixo bem clara a minha posição.
Contudo, isso não significa que tudo o que a Ucrânia e os seus líderes façam seja bom ou louvável.
Recentemente o Governo ucraniano aprovou uma lei que tem como único objectivo dificultar ou impossibilitar o trabalho da Igreja Ortodoxa da Ucrânia que está em comunhão com o Patriarcado de Moscovo.
A realidade religiosa da Ucrânia é complexa e está muito ligada ao actual conflito, mas para simplificar ao máximo, existem duas grandes igrejas ortodoxas no país, uma autocéfala, isto é, reconhecida como independente pelo Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, e outra que está historicamente ligada ao Patriarcado de Moscovo. Para simplificar, vou apelidar a primeira de IOU e a segunda de IOU-PM. As duas igrejas estão de costas voltadas há muitos anos, tendo a situação piorado com o reconhecimento oficial da autocefalia da IOU por Constantinopla, coisa que Moscovo, a IOU-PM e outras igrejas aliadas não reconhecem.
Na verdade, a ligação de facto ao Patriarcado de Moscovo é complexa. Historicamente, a IOU-PM era mesmo uma dependência da Igreja Russa. Contudo, em Maio de 2022, já depois da invasão e sob pressão nacional e internacional, a IOU-PM mudou os seus estatutos e desfiliou-se oficialmente de Moscovo. Porém, não chegou a declarar-se autocéfala, na verdade nunca esclarecendo verdadeiramente qual era o seu estatuto, pelo que muitos concluíram – incluindo as autoridades ucranianas – que a manobra não passava de uma operação de maquilhagem e que as ligações se mantinham iguais. Não ajudou o facto de o próprio Patriarca de Moscovo continuar sempre a referir-se à IOU-PM como uma filial.
Desde antes da guerra que as autoridades ucranianas têm tentado apresentar a IOU-PM como um grupo infiltrado de Moscovo em terras ucranianas, e é verdade que, pelo menos aparentemente, alguns clérigos, incluindo monges, têm sido detidos e condenados por colaborar com o inimigo. Mas também é verdade que centenas de milhares de militares que lutam na linha da frente contra as forças invasoras também pertencem à IOU-PM e que muitos já deram a vida pela sua pátria, tendo sido sepultados como fiéis da IOU-PM. Claramente, este tema não é preto-e-branco e há muitas pessoas que sendo patriotas e querendo a vitória da Ucrânia na guerra, não podem, em consciência, reconhecer a autoridade da IOU, que consideram não ter sido erigida conforme os cânones da Igreja Ortodoxa, reconhecendo a IOU-PM como a verdadeira expressão da ortodoxia no país. Essas pessoas podem agora ver as suas igrejas encerradas ou confiscadas, os seus bispos detidos ou expulsos, e os seus padres condenados.
Sobre esta discussão a minha posição é igualmente clara: a liberdade religiosa é para todos. Se há elementos da IOU-PM que estão a colaborar com o inimigo ou a violar leis ucranianas, que sejam devidamente detidos, julgados e eventualmente condenados por isso, mas a proibição de funcionamento de toda uma igreja é um passo extraordinário e que viola o direito humano à liberdade de religião e de consciência.
O Papa Francisco parece concordar comigo, tendo dito o mesmo na oração do Angelus, no domingo dia 25 de Agosto:
“Continuo a seguir com tristeza os combates na Ucrânia e na Federação Russa e, pensando nas leis recentemente adotadas na Ucrânia, temo pela liberdade de quem reza, porque quem reza verdadeiramente reza sempre por todos. Não se comete o mal porque se reza. Se alguém comete o mal contra o seu povo, será culpado por isso, mas não pode ter cometido o mal porque rezou. Então, que aqueles que querem rezar possam rezar naquela que consideram a sua Igreja. Por favor, que nenhuma Igreja cristã seja abolida, direta ou indiretamente. As Igrejas não se tocam!”
Mas permitam-me partilhar que a minha posição não se baseia unicamente na razão, mas também na experiência pessoal da parte britânica da minha família. Muita da retórica que está a ser usada agora pelas autoridades ucranianas contra a IOU-PM foi a usada pelas autoridades britânicas contra os que, após a reforma anglicana, se mantiveram fiéis à Igreja Católica.
Claro que este paralelo não é perfeito. As causas da reforma anglicana não podem ser comparadas com as que levaram ao estabelecimento da IOU na Ucrânia, mas o que me interessa é esta vilificação que se está a levar a cabo contra pessoas que apenas sentem, em consciência, que não podem nem devem mudar de confissão religiosa sob pressão das autoridades.
Tal como sei que durante séculos houve muitos católicos britânicos que amaram e serviram o seu país, dando até a vida por ele, ao mesmo tempo que lidavam quase diariamente com a desconfiança oficial dos seus governantes, sei que o mesmo se pode aplicar hoje na Ucrânia com muitos dos fiéis da IOU-PM.
O passar dos anos veio demonstrar que a cultura de desconfiança para com os católicos britânicos era absurda e pode até ser vista como embaraçosa, acredito que o mesmo venha a acontecer com esta lei que foi aprovada especificamente para atingir a IOU-PM.
Espero e rezo pelo fim da guerra, pela vitória da Ucrânia e por um tempo em que todos possam viver a sua fé em total liberdade naquele país.