
Os bispos portugueses divulgaram esta quinta-feira os critérios e regulamentos para pedido e atribuição de compensações por abusos sofridos no contexto da Igreja Católica.
O documento completo está aqui, e podem lê-lo em 15 minutos, mas trocado por miúdos, estas são as principais conclusões. Mais abaixo farei umas considerações mais particulares.
As vítimas têm até ao dia 31 de Dezembro para apresentar os seus casos e os seus pedidos. O pedido também pode ser apresentado pelo representante legal.
Numa primeira fase, os casos serão investigados por uma comissão de instrução, composta por pelo menos duas pessoas: uma do Grupo Vita, outra da Comissão Diocesana da respectiva diocese, ou órgão equivalente, se for uma ordem ou instituto religioso. Terminada essa investigação, que tem por objectivo apreciar a credibilidade da acusação e produzir prova, e caso exista consenso entre os membros da comissão, o caso passa para uma outra comissão que apenas tem por objectivo apurar o valor da compensação a atribuir.
Isto é o básico e essencial. Mas existem alguns pontos que vale a pena explorar com mais atenção.
Duas comissões?
A existência de duas comissões pode dar a entender que se trata de mais burocracia desnecessária, mas na verdade penso que esta terá sido uma decisão inteligente dos bispos. Temos de nos recordar que nenhum dos envolvidos é profissional da coisa. Os membros das comissões diocesanas, do Grupo Vita, etc., são pessoas que têm os seus empregos e desempenham estas funções à parte. Sabemos como é difícil, tantas vezes, conjugar a disponibilidade de duas ou três pessoas, quanto mais nove ou dez! O facto de a primeira comissão ser composta por pouca gente deve permitir que essa parte do processo avance mais depressa. Depois, a segunda comissão trabalha apenas sobre as conclusões da primeira, analisando mais a frio e de forma técnica, as provas existentes e propondo uma compensação.
Prova
Ao longo do documento fala-se várias vezes na produção de prova. Ora esta é talvez a maior das dificuldades nestes casos. É que nalgumas situações estamos a falar de abusos que ocorreram há muitos anos, e não existe prova física de qualquer espécie. Tudo o que existe é a palavra da vítima contra a palavra do alegado abusador.
Dito isto, obviamente a Igreja não se pode colocar na posição de simplesmente distribuir compensações a qualquer pessoa que diz que foi abusada.
O que se passa no mundo anglófono, por exemplo, é que as comissões independentes (equivalentes no nosso caso às comissões diocesanas) emitem um parecer sobre a credibilidade da versão da alegada vítima, independentemente da existência de provas físicas ou documentais, e que tem peso na decisão final da diocese sobre como proceder.
Resta saber se estes regulamentos da CEP se irão deixar prender muito pela obrigatoriedade da prova documental e física, ou se haverá espaço para decisões com base na credibilidade da vítima e da sua história. Caso não haja, parece-me difícil que haja muitos pedidos de compensação deferidos.
Testemunhos
Este é outro ponto dramático. Sabe-se que para as vítimas, contar estas histórias de novo é muitas vezes uma duplicação do sofrimento. É verdade que o regulamento faz questão de dizer que, nos casos em que já existe um testemunho documentado – seja por processo do Ministério Público, seja por processo anterior canónico – devem-se evitar diligências desnecessárias, mas também especificam que a comissão de instrução deve ouvir presencialmente a vítima. Mais uma vez, entendendo-se a medida, para evitar fraudes ou manipulações, tem de se sublinhar que este é um passo duro e que provavelmente afastará muitas das alegadas vítimas, deixando-as sem compensações.
Entra aqui em jogo um aspecto que me parece também importante realçar, que é a decisão, a meu ver incompreensível, da Comissão Independente de destruir a chave que fazia equivaler os relatos recebidos às identidades reais das vítimas. Pedro Strecht explicou que o fez por uma questão de respeito ao sigilo, mas o resultado prático é que uma vítima que já tomou o passo difícil de contar toda a sua história à Comissão Independente não tem agora forma de utilizar esse documento e apresentá-lo à comissão de instrução, tem de contar tudo outra vez. Quantos o irão fazer?
Cautelas episcopais
Há dois pontos nos regulamentos que é preciso relevar. Recorde-se que a Comissão de Instrução deve ser composta por pelo menos duas pessoas, sendo uma do Grupo Vita e outra da Comissão Diocesana ou equivalente. Ora, diz o regulamento:
Em caso de divergência de posições, deverá prevalecer o entendimento do representante da Comissão Diocesana, ou do representante do Instituto Religioso ou da Sociedade de Vida Apostólica.
Qual a necessidade disto? Não faria mais sentido, digo eu, garantir que a Comissão de Instrução tem três pessoas, e decidir-se por maioria em caso de divergência? É que este ponto dá inevitavelmente a ideia de que a Igreja está a guardar para si uma saída de emergência.
Ora, na minha experiência, a maioria dos membros das Comissões Diocesanas são pessoas honestas, isentas e, quando católicas praticantes, perfeitamente capazes de colocar o bem da vítima acima da instituição. Mas será assim em todo o lado? Será assim sempre? Será que é assim que a vítima entende? Ficará sempre a dúvida, o que me parece desnecessário.
Mais, a seguir diz-se:
Os pareceres emitidos quer pela Comissão de Instrução, quer pela Comissão de Fixação da Compensação deverão ser apresentados, devidamente fundamentados e sob sigilo, à Conferência Episcopal Portuguesa ou ao/à Superior/a Maior competente, que, respetivamente, sobre eles decidirá em termos definitivos.
O que é que isto significa, exactamente? O bispo ou superior pode decidir de forma diferente da recomendação da Comissão? E a transparência? Compreendo que não sejam divulgados nomes de vítimas ou acusados, mas não deve existir uma obrigação de prestação pública de contas? Uma forma de o público, e os fiéis, saberem que naquela diocese houve um caso de acusação credível, se não mesmo provada, e que a vítima recebeu uma indemnização de valor X? Eu acredito que esta seria a melhor forma de agir. O sigilo sobre todo o processo deixa sempre aberta a possibilidade de encobrimento, e quanto menos a Igreja deixar o flanco aberto para isso, melhor para todos.
Resta ver agora como é que tudo isto irá funcionar na prática, sendo certo que foi criada uma expectativa não só na sociedade como entre as próprias vítimas, que importa ter em conta.