Recentemente o presidente da CEP, D. José Ornelas, foi acusado de dois casos diferentes de encobrimento de abusos sexuais. Primeiro, foi em relação a alegados casos que teriam decorrido em Moçambique. O assunto foi tema durante alguns dias até que o jornal SOL publicou uma reportagem em que as alegadas vítimas admitem que foram pagas para dizer que tinham sido abusadas, e que põe seriamente em causa a credibilidade do denunciante.
O outro caso envolve alegados abusos cometidos pelo padre Abel Maia, ex-dehoniano, agora ao serviço da arquidiocese de Braga.
Na noite de segunda-feira o programa “Exclusivo” da TVI, passou uma longa reportagem, composta na sua maior parte por declarações do padre Roberto Sousa, em que este acusa D. José Ornelas e outros superiores dehonianos de terem encoberto este caso.
Vale a pena olhar mais de perto para os dados de que dispomos neste momento.
O caso surgiu em 2014 quando o padre Roberto Sousa escreveu uma carta ao bispo do Porto ameaçando revelar situações de impropério sexual, incluindo um caso de abusos, se fosse retirado da sua paróquia de Canelas. O bispo na altura era D. António Francisco dos Santos, que, entretanto, já morreu. O bispo não hesitou e entregou a carta ao Ministério Público, para que o alegado caso de abusos fosse investigado.
Este dizia respeito ao padre Abel Maia. Segundo a imprensa da época, um homem dizia que em 2003 o esse padre lhe tinha tocado na zona dos órgãos genitais, por cima das calças. Na altura dos factos a alegada vítima teria 20 anos. Esta informação consta de um artigo do jornal i, de 2015. Desde a altura em que o caso foi mais falado, até há dias, nunca se tinha alegado mais nada sobre o padre Abel.
O caso foi investigado pelo Ministério Público e arquivado por falta de testemunhas – a vítima negou os factos quando foi chamado a depor –, por falta de indícios e por prescrição.
O padre Abel Maia processou então o padre Roberto Sousa por difamação, mas este não chegou a ser julgado porque os dois chegaram a um acordo, em que o padre Roberto se comprometeu a publicar um pedido de desculpas públicas pelo que tinha dito sobre o padre Abel. Esse pedido de desculpas nunca foi publicado.
Esta situação ressurgiu agora, com D. José Ornelas a ser acusado de encobrimento. Num esclarecimento prestado pela Arquidiocese soube-se que afinal tinha havido um importante desenvolvimento. Os dehonianos fizeram um relatório, enviaram-no para Roma e o Vaticano decidiu, com base nesse relatório, aplicar uma pena canónica de cinco anos ao padre Abel, pena que já foi cumprida.
Antes de passar às revelações feitas no programa de ontem, vejamos já um dado importante. Apesar de na altura ter sido noticiado como um caso de abuso de menores, a verdade é que todos os indícios apontavam para um caso de assédio entre duas pessoas maiores de idade. Em lado algum se dizia que a vítima era menor de idade na altura dos alegados factos.
Na reportagem de ontem o padre Roberto Sousa falou longamente sobre o caso. Vou analisar em alguns pontos o que foi dito.
1 – Na entrevista ele diz que só agora é que soube que tinha havido uma pena canónica imposta ao padre Abel, que se houve pena canónica é porque houve culpa, e que essa pena não foi cumprida. Ele assume que a pena seria suspensão total do ministério.
Há vários problemas aqui. Se ele não sabia que havia uma pena, é porque não conhece o processo, e se não conhece o processo não sabe qual foi a culpa apontada ao padre Abel, nem qual a pena imposta. Dizer que a pena era de suspensão total do ministério é adivinhação. A informação que eu obtive é de que a pena não era de suspensão, mas de não ter contacto com menores e que esta foi “escrupulosamente cumprida”.
2. A alegada vítima não quis gravar, mas segundo a reportagem ele terá dito que afinal mentiu quando foi depor, e que as alegações são mesmo verdade. A própria reportagem, porém, diz que estes abusos terão começado “no início dos anos 2000”, e que a vítima tem agora 40 anos, o que faz dele maior de idade na altura dos alegados factos.
A única pessoa que disse publicamente, até agora, que esta vítima foi também abusada quando era menor de idade foi o padre Roberto, ontem, na reportagem.
Contudo, convém lembrar que, entretanto, houve uma investigação do Ministério Público, e houve um processo canónico. Em nenhuma altura se falou de abuso de menores. Se, no processo canónico, se tivesse concluído que tinha havido abuso de menores, então a pena aplicada pelo Vaticano jamais seria de cinco anos, pois a política é de tolerância zero e na altura em que a pena foi aplicada – depois de 2015 – o Vaticano estava a suspender padres em todo o mundo às centenas, não existindo qualquer razão credível para abrirem uma excepção para este caso particular.
Pode ser verdade que tudo começou quando a vítima tinha 14 anos, como alega o padre Roberto? Isso leva-nos ao terceiro ponto.
3. É o padre Roberto digno de confiança? Ora aí está a questão fulcral. É que estamos a falar de um homem que agora acusa os outros de encobrir, mas em 2014 isto só se tornou público porque ele escreveu uma carta ao bispo do Porto a ameaçar divulgar o caso se o bispo o mudasse de paróquia. Ou seja, está-nos a ser pedido que condenemos na praça pública um homem por abuso de menor, e outros por encobrimento, com base na palavra de um chantagista.
O padre Roberto teve várias oportunidades para fazer uma denúncia completa destes alegados factos às autoridades competentes, mas nunca o fez, e vem agora acusar os outros de encobrir? Quando ainda por cima os outros – neste caso D. José Ornelas e outros responsáveis dehonianos – de facto agiram logo em 2003, afastando o padre Abel do local para evitar que ele tivesse mais contacto com a alegada vítima – uma vez que D. José Ornelas diz que percebeu, independentemente dos avanços e recuos no testemunho, que existia ali uma relação de dependência emocional – e mais tarde abrindo um processo e elaborando um relatório, que foi enviado para Roma, de onde saiu uma pena canónica.
O padre Roberto teve uma frase curiosa na sua entrevista de ontem. Foi-lhe perguntado porque é que não tinha uma paróquia actualmente, e respondeu que aceitar uma paróquia seria aceitar um preço pelo seu silêncio. O problema é que nós bem sabemos que o preço do silêncio dele foi ele que estabeleceu, numa carta escrita a D. António Francisco dos Santos, e era precisamente uma paróquia.
Resumindo, temos dois cenários:
Primeiro: É tudo verdade, o padre Abel Maia abusou de um rapaz, e mais tarde adulto, durante vários anos. O caso era conhecido dos superiores dos dehonianos, mas foi encoberto até ao ponto em que já não o podiam esconder mais e fizeram um relatório que foi enviado para Roma, mas no qual esconderam o facto de se tratar de um caso de abuso de menores, dizendo ser apenas um caso de assédio de um adulto, na esperança de que o padre Abel, que entretanto deixou de ser dehoniano e passou a ser diocesano, não fosse afastado do sacerdócio, mas obtivesse uma pena mais leve. Este cenário depende, por enquanto, unicamente da integridade de um padre reconhecidamente chantagista e conflituoso.
Segundo: Isto tudo não passa de uma vingança de um padre que tem um passado problemático a vários níveis, que recusou mudar de paróquia quando o bispo o ordenou, que tentou chantagear o bispo no seguimento da sua insistência, que escapou a um julgamento por difamação prometendo publicar um pedido de desculpas num jornal de grande tiragem que depois nunca foi publicado e que hoje em dia celebra missa para os seus fiéis seguidores num armazém em Canelas, porque está sem nomeação.
Há uma expressão em inglês muito curiosa, que não tem equivalente em português, mas que acredito aplicar-se ao padre Roberto: I trust him as far as I can throw him.
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