
Nota prévia: Embora em português existam as palavras “laicidade” e “secularismo”, em inglês só existe “secularism” para traduzir o mesmo conceito. Assim, embora ao longo deste texto a tradução tenha optado por um ou outro termo, o leitor deve saber que no inglês o termo é sempre o mesmo.
O Papa Leão XIV reafirmou recentemente uma convicção que os cristãos sentem há séculos: “as instituições precisam de pessoas que saibam viver uma laicidade saudável, isto é, uma forma de pensar e de agir que afirma o valor da religião enquanto preserva a distinção – não a separação ou a confusão – da esfera política”.
O Papa toca aqui no cerne do entendimento de Santo Agostinho de saeculum, que pode ser traduzido grosso modo como “tempo” ou “era”. Segundo Agostinho, vivemos uma era em que todas as instituições humanas estão abrangidas por uma história sagrada que se realizará plenamente na segunda vinda de Cristo.
Os cristãos, iluminados pelo Evangelho, têm por isso a obrigação de agir nessas instituições e de as influenciar de uma forma que confirma, sustenta e promove não só a dignidade da pessoa enquanto criada à imagem de Deus e redimida por Cristo, mas – como argumenta Russel Hittinger – também a dignidade da sociedade.
Resumindo, para os cristãos “secularismo” ou “laicidade” não são palavrões. Longe disso. Pelo contrário, são mesmo a forma correcta de descrever a realidade como algo já redimido, mas que aguarda a revelação plena daquilo que a redenção gerou. Uma vez que o saeculum actual não é o horizonte final do homem, as instituições seculares gozam de uma autonomia legítima, mas apenas no sentido de “distinta” e não de “separada”.
Os recentes comentários do Papa Leão compreendem-se melhor se voltarmos à recapitulação concisa que Bento XVI fez do mesmo conceito em 2006. Falando a um grupo de juristas italianos, o antigo Papa disse que os crentes têm a obrigação de:
contribuir para elaborar um conceito de laicidade que, por um lado, reconheça a Deus e à sua lei moral, a Cristo e à sua Igreja o lugar que lhes cabe na vida humana individual e social e, por outro, afirme e respeite a “legítima autonomia das realidades terrestres”, significando com esta expressão como confirma o Concílio Vaticano II que “as coisas criadas e as próprias sociedades têm as suas próprias leis e valores, que o homem gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar (Gaudium et spes, 36).
Bento XVI usa o conceito medieval de saeculum como um exemplo com o qual contrasta o conceito pós-moderno. Na Idade Média, “secular” significava apenas a distinção entre os poderes civil e eclesiástico. O destino final do homem estava para além do tempo, por isso o seu destino final deveria ser a preocupação da Igreja. Mas o homem não deixa de viver no tempo, por isso são necessárias instituições seculares para supervisionar assuntos que digam respeito às suas necessidades temporais.
A preocupação da política deve ser os bens desta ordem temporal, nomeadamente a paz na terra a que Agostinho chama tranquillitas ordinis, a “tranquilidade da ordem”. O enfoque da Igreja deve ser a salvaguarda do conteúdo da revelação divina e a dispensação dos sacramentos que conduzem as almas para o Céu.

Temos necessidade tanto de príncipes como de bispos, embora na Idade Média houvesse muitas ocasiões em que um usurpava o outro. As tentativas de resolver esses conflitos, porém, dependiam sempre de um entendimento correcto da laicidade como definida por Agostinho e explicada por Bento XVI. Neste sentido, escreve Larry Siedentop, “o secularismo é a dádiva do Cristianismo ao mundo”.
Robert Reilly explica que “o próprio Cristianismo apoiou e defendeu a secularização necessária para o desenvolvimento do constitucionalismo. A distinção entre Deus e César, tão necessária para as soberanias distintas da Igreja e do Estado, tem apenas uma fonte (i.e., o Cristianismo).”
Claramente, o Papa Leão XIV quer, de uma forma ou de outra, dar continuidade a este projeto crucial que Bento XVI empreendeu, de recordar ao mundo esta dádiva.
Bento gostava de recordar ao mundo de que a noção pós-moderna de laicidade tinha subvertido completamente a concepção medieval. “Hoje a laicidade é geralmente entendida como exclusão da religião dos vários contextos da sociedade e como sua relegação para o âmbito individual”, afirmou.
Foi esta atitude que transformou “laicidade” num palavrão, pelo menos para os cristãos.
Trata-se de um entendimento erróneo, que tenta justificar a total separação entre a Igreja e o Estado, deixando aquela sem qualquer espaço para intervir na vida social e na conduta dos cidadãos. Implica que a política seja uma zona a-religiosa que deve ser protegida da poluição da crença.
É crucial fazer uma reapreciação daquilo que Agostinho, Bento e Leão estão a transmitir, numa altura em que tantos perdem a esperança nas instituições políticas de hoje e pedem uma viragem radical para algum tipo de ordem “pós-liberal”.
Se, como argumenta Patrick Deneen, o “liberalismo” implica uma mudança fundamental da definição clássica de “liberdade” para uma noção moderna segundo a qual estou livre para dispor da minha propriedade da forma como me aprouver, então temos claramente um problema em mãos.
Se, porém, a Liberdade implícita em liberalismo deve ser temperada pelas palavras e acções de cristãos a trabalhar na esfera pública de acordo com um entendimento correcto de “laicidade”, então não existe razão para que essa liberdade seja restringida por estruturas políticas externas.
Por outras palavras, se os cristãos não só podem como devem agir e falar no espaço “secular” como cristãos – e se o Estado tem obrigação de permitir que assim ajam e falem – então haverá uma voz robusta no espaço público a favor do uso responsável da liberdade por parte dos cidadãos, a favor do bem comum, precisamente pela colocação dos limites necessários por vontade própria.
Resumindo, a recuperação de um entendimento correcto de laicidade – no sentido claramente positivo usado por Agostinho – inspirará os cristãos a promover o bem público de forma muito mais eficiente do que a criação de um estado pós-liberal que de alguma forma restringe a liberdade humana com o propósito de redireccionar a vontade dos seus cidadãos rumo ao bem maior.
O “secularismo saudável” que o Papa Leão XIV tem em mente – o mesmo que Bento XVI se esforçou por recordar à Europa e ao Ocidente – é o melhor garante para o florescimento humano do que a cedência a um secularismo mau que pede a limitação por meios externos da liberdade humana.
Daniel B. Gallagher lecciona filosofia e literatura no Ralston College. Anteriormente, foi secretário de latim dos Papas Bento XVI e Francisco.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 4 de Outubro de 2025)
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