
Escrevi um perfil do Papa Leão XIV para o Expresso. Podem ler na íntegra no jornal aqui.
Por o artigo ser só para subscritores, e dada a importância do momento, publico aqui o texto integral.
Leão, sim, mas um Leão profundamente emocionado. Foi assim que apareceu Robert Francis Prevost na varanda de São Pedro para saudar os fiéis que o esperavam há horas na Praça de São Pedro. Ao mesmo tempo que Leão XIV saudava o mundo católico, milhões de pares de olhos procuravam nas suas palavras e nos seus gestos sinais daquilo que será o seu pontificado. E alguns desses sinais saltavam de facto à vista.
Comecemos pelo nome, que é uma forma que os Papas têm de sinalizar as suas prioridades e preocupações. Neste caso, pode ler-se uma referência a Leão XIII, um Papa que conduziu a Igreja para o Século XX e que lançou, através da encíclica Rerum novarum, as bases para aquilo que hoje em dia é conhecido como a doutrina social da Igreja Católica, com grande destaque para os direitos sociais, dos trabalhadores e dos sindicatos, entre outros.
Também a escolha dos paramentos com que apareceu na varanda de São Pedro pode também ser lido como um regresso ao formalismo que Francisco rechaçou, mas que o mundo se habituou a ver com Bento XVI, que apesar disso não deixava de ser também uma pessoa simples. Talvez haja aqui um primeiro sinal de mão estendida ao setor mais conservador da Igreja.
Depois vieram as palavras, marcadas por emoção, e onde Leão XIV fez questão de referir por duas vezes o seu antecessor direto, usando ainda palavras-chave do pontificado de Francisco, incluindo uma palavra que repetiu pelo menos quatro vezes: “Todos”. Não terá sido inocente também o apelo aos fiéis para que “não tenham medo”, ecoando as palavras de João Paulo II quando foi eleito, décadas antes.
Prevost parece estar a demonstrar assim que não pretende a rutura com o passado, nem o imediato nem o das últimas décadas, mas sim juntar o melhor dos últimos pontificados, tão diferentes entre si, para conduzir a Igreja num mundo que parece ser cada vez mais complexo e com cada vez mais conflitos. Note-se aqui que uma das palavras que mais repetiu foi “paz”.
O menos americano dos americanos
O anúncio de um americano para liderar a Igreja Católica foi recebido com alguma surpresa, mas não total. O nome de Robert Francis Prevost tinha começado já a ser falado ao longo da última semana das congregações gerais, numa altura em que a cotação dos dois principais papabili, Pietro Parolin e Luis Antonio Tagle, parecia estar em queda. Mas era um nome entre meia dúzia de outros.
O novo Papa foi eleito ao que tudo indica no quarto escrutínio, precisamente o que aconteceu no caso de Bento XVI, que era considerado o sucessor natural de João Paulo II. Já o Papa Francisco foi eleito ao final de cinco escrutínios e João Paulo II ao final de oito. Não foi desta que se quebrou a tradição dos últimos duzentos anos de conclaves curtos.
Leão XIV é o primeiro Papa da América do Norte, o que o coloca em boa posição para empreender um dos principais desafios que a Igreja Católica terá nos próximos anos, que é de refazer as pontes com a Igreja e com as autoridades civis dos Estados Unidos, que sob o pontificado de Francisco ficaram seriamente danificados. Ao mesmo tempo não pode de forma alguma ser considerado próximo da administração Trump, e envolveu-se inclusivamente numa disputa pública com JD Vance, o vice-presidente católico dos Estados Unidos, quando este citou Santo Agostinho para justificar a política anti-imigração. Fê-lo com toda a autoridade de cardeal formado na Ordem de Santo Agostinho.
Prevost era conhecido em Itália como o menos americano dos americanos. Os longos anos passados no Peru, onde desempenhou vários cargos, entre os quais bispo de Chiclayo e presidente da Conferência Episcopal Chilena. Passou estes últimos anos em Roma, como prefeito do Dicastério para os Bispos, sendo assim responsável pela nomeação de quase todos os bispos no mundo, o que lhe deu naturalmente uma rede de contactos enorme entre o episcopado e entre muitos dos mais recentes bispos.
Reúne também a vantagem de ser um homem da Curia romana, mas que passou grande parte do seu ministério fora da curia, podendo assim aplicar um olhar de fora para lidar com os muitos desafios que o Vaticano enfrenta, entre os quais o descrédito do seu sistema judicial, com um megaprocesso que se arrasta há anos e cheio de polémicas, mas também uma muito aguda crise financeira, que requer uma mão de ferro e, quem sabe, uma grande dose de pragmatismo anglo-saxónico para evitar a bancarrota.
Teologicamente, Prevost é visto como um moderado. Os mais conservadores acusam-no de excessiva cautela no que diz respeito a questões fraturantes, como o grau de acolhimento aos homossexuais ou a ordenação de mulheres. Outra leitura possível é que enquanto bispo o agora Leão XIV não teve de abordar tanto esses assuntos que não são prioritários na América Latina.
Sabe-se que a diocese de Chiclayo tem um número muito elevado de padres de movimentos católicos tidos como conservadores, como o Opus Dei, e que era muito estimado e respeitado por eles, com quem sempre trabalhou muito bem, mas era suficientemente próximo de Francisco para merecer a sua total confiança.
Sobre o elefante na sala da Igreja Católica, isto é, a crise dos abusos sexuais, Prevost traz uma grande vantagem, mas também algumas fragilidades. A vantagem é precisamente o facto de ser americano, uma vez que nenhum país fez mais para abordar este problema nas últimas décadas do que a Igreja americana, que implementou politicas de tolerância zero e de transparência que nem o Vaticano tem adotado.
Por outro lado, há pelo menos dois casos de abusos que poderão ensombrar o seu pontificado e fragilizar o seu testemunho a este respeito. Nos anos 90, quando vivia em Chicago enquanto provincial dos Agustinianos no centro-oeste dos EUA, a arquidiocese local pediu-lhe para acolher um padre predador sexual que tinha sido condenado quase uma década antes por abuso de menores e estava impedido de ter contacto com menores de idade. Prevost aceitou, mas não referiu à arquidiocese que a residência ficava ao virar da esquina de uma escola católica, nem informou a escola sobre as tendências do seu novo vizinho.
Anos mais tarde, já em Chiclayo, Prevost foi acusado por três irmãs que se diziam vítimas de abusos sexuais por um padre da diocese de não ter feito o suficiente para investigar a situação. Quando rebentou a polémica Prevost já tinha ido para Roma mas a diocese insistiu que o anterior bispo tinha aberto uma investigação preliminar, como mandam as regras, e enviado para Roma, tendo sido o Dicastério para a Doutrina da Fé a mandar arquivar o caso. As vítimas dizem que a investigação, que nunca foi tornada pública, terá sido feita por encomenda precisamente para ser arquivada.
Convém referir que não existe qualquer prova concreta de má gestão pelo agora Papa e há mesmo quem diga que as acusações contra ele são fruto de difamação lançada por um movimento polémico ultraconservador que nasceu no Peru, o Sodalício da Vida Cristã, e que foi recentemente suprimido pelo Vaticano.
Feito este resumo do passado do homem que agora assumiu a liderança da Igreja Católica – enquanto vigário de Cristo, que é o verdadeiro líder, pela perspetiva da mesma – convém recordar o próprio peso do cargo. O equivale a dizer que o novo Papa não é simplesmente o Cardeal Prevost vestido de branco, é Leão XIV, e a mudança de nome representa isso mesmo, a assunção de uma nova identidade e de uma nova personalidade. O Papa Francisco era conhecido por não sorrir, mas passou os próximos 12 anos a encantar o mundo com o seu humor e sorriso rasgado; Bento XVI, que enquanto cardeal Ratzinger era conhecido como o Rottweiler de Deus, afinal mostrou-se uma pessoa gentil e encantadora. Aquilo que Leão XIV vai ser é o que veremos nos próximos tempos, mas é certo que já não é apenas Robert Francis Prevost.
Passavam poucos minutos das 17h quando o fumo branco saiu da chaminé colocada por cima da capela sistina e quando muitos dos comentadores e jornalistas já tinham desistido de ter resultados antes do final da tarde. De imediato a multidão em expectativa transformou-se numa multidão em êxtase e gritos de alegria. Talvez não fossem, mas podiam ser os mesmos que encheram a Praça de São Pedro e as vias dos arredores durante o funeral do Papa Francisco. A Igreja demonstra desta forma como continua a ser mestre da arte da continuidade e da sucessão. Afinal de contas quem aparece na varanda, segundo acreditam os católicos, não foi só o novo Papa, foi São Pedro.