
Ao longo do seu pontificado de 13 anos, o Papa Francisco deixou muitas marcas na Igreja e no mundo. Neste artigo olharei por pontos para alguns dos principais temas que ficarão como legado. É natural que vá actualizando o texto e acrescentando pontos, e como sempre, aprecio as vossas sugestões e comentários.
As periferias
Mal foi eleito, Francisco fez questão de dizer que vinha “do fim do mundo”. O primeiro Papa de fora da Europa em vários séculos cedo deixou claro que não iria ser eurocêntrico. Fez questão de ser o Papa das periferias, viajando para países longínquos, onde nenhum outro Papa tinha estado – nem sonhávamos que alguma vez fosse – e trazendo as periferias para o centro do mundo da Igreja, através, por exemplo, das nomeações para o Colégio dos Cardeais. São 25 os países representados no Colégio que nunca lá tinham estado antes. Uma verdadeira revolução e uma tendência que dificilmente o próximo Papa poderá reverter. Mas a preocupação do Papa não se limitou às periferias geográficas, Francisco reconheceu que as periferias incluem também aqueles que julgam que não têm lugar dentro da Igreja, os que se sentem excluídos, e como veremos adiante, também esses foram convidados a tomar o seu lugar à mesa.
Ecologia
Francisco foi também o Papa da ecologia. Tradicionalmente, a Igreja tinha – e em muitos círculos ainda tem – uma certa desconfiança em relação ao movimento ecologista, e é verdade que esse movimento, nas suas expressões mais extremas, tem muitos aspectos de neopaganismo. Bento XVI já tinha aberto caminho, falando da ecologia humana – que coloca a pessoa no centro das preocupações, em vez de o apresentar como parasita sobre o planeta – mas Francisco foi mais longe, colocando todo o seu peso por detrás dos apelos contra as mudanças climáticas e pedindo aos estados reduzam as emissões de carbono, etc., Nesta sua batalha contou com um importante aliado que se tornou também seu amigo, o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I.
Doutrina
O Papa é o supremo guardião da doutrina, que na tradição da Igreja não pode ser alterada, apenas desenvolvida. Pouco depois de ser eleito, começou a parecer que Francisco defendia certas posições que seriam incompatíveis com a doutrina tradicional da Igreja, como por exemplo o acesso aos sacramentos para pessoas em situação canónica irregular, incluindo os divorciados e recasados. Em Amoris Laetitia, Francisco operou a tal revolução que alguns esperavam e outros temiam, fazendo-o ainda por cima numa nota de rodapé. A tal nota de rodapé causou polémica e divisão, mas hoje já são poucos os que perdem sono com isso. Já quando, anos mais tarde, foi publicado o Fiducia Supplicans, que permite que pessoas em situação irregular, como por exemplo pessoas em uniões homossexuais, recebam bênçãos, ainda que a título individual, a situação foi diferente. Apesar de não se tratar propriamente de uma mudança doutrinal, ou evolução, sequer, o tema foi tão polémico que motivou uma revolta inédita no pontificado de Francisco e acabou por se transformar num desastre comunicacional para o Vaticano.
Ecumenismo
A Igreja Católica acordou para o ecumenismo no Século XX, e o Papa Francisco seguiu o exemplo dos seus antecessores ao dar lugar de destaque ao diálogo com as outras confissões cristãs. A já referida amizade com Bartolomeu, de Constantinopla, é um dos pilares do ecumenismo de Francisco e chegou ao ponto de se falar, de forma séria, em encontrar uma data comum para a celebração da Páscoa, para além de estar agendada para este ano uma viagem conjunta à Turquia para assinalar os 1700 anos da formulação do Credo de Niceia. Mas Francisco também foi mais longe – muitos diriam longe demais – no diálogo com os protestantes, chegando a instalar uma imagem de Lutero em Roma durante o aniversário da reforma protestante.
Diálogo inter-religioso
Por mais que os Papas conversem com líderes de outras confissões religiosas, a verdadeira bitola do diálogo inter-religioso são as relações com muçulmanos e com judeus. Neste aspecto, Francisco tem um registo de sucessos misto. Com os muçulmanos deram-se passos absolutamente inéditos. Francisco encontrou-se várias vezes com o Grão Imam do Al-Azhar, no Egipto, que numa religião totalmente descentralizada ainda é algo que se assemelha a uma autoridade universalmente reconhecida, e assinou a declaração de Abu Dhabi, em conjunto com vários outros líderes muçulmanos sunitas. Durante a sua visita ao Iraque foi recebido pelo Grão Ayatollah Ali al-Sistani, uma das maiores autoridades xiitas vivas. Já a relação com os judeus foi um pouco mais conturbada, sobretudo no último ano do seu pontificado, com Israel e várias autoridades judaicas a queixarem-se das suas posições relativas à guerra entre Israel e o Hamas, com alguns outros incidentes pelo meio a gerar uma pequena crise nas relações entre as duas fés.
Abusos
Na questão dos abusos Francisco tem também pontos altos e pontos baixos. De positivo a empatia que o Papa sempre revelou para com as vítimas de abusos, não só nas palavras como nos gestos, encontrando-se com grupos de vítimas em muitas das suas viagens oficiais. Francisco reformou ainda a legislação da Igreja que lida com estas questões, tornando-a mais fluída e exigente. Por outro lado, contudo, revelou em mais do que uma ocasião falhas de discernimento, defendendo publicamente quem não devia – no Chile; dando guarida no Vaticano a um bispo não só acusado como mesmo condenado por abusos na Argentina; nomeando um bispo na Argentina que pouco depois resignou por ter sido acusado de abusos (apenas um de vários casos estranhos que se passaram com bispos argentinos durante este pontificado); arrastando os pés com o caso do Pe Rupnik, que foi acusado de abusar sexualmente de freiras de quem era director espiritual; e mantendo no cargo o sostituto, um adido particularmente próximo do Santo Padre, mesmo depois de este ter tentado ilibar, de forma ilegal, um padre condenado em duas instâncias por abuso sexual de menores.
Os silêncios
O pontificado de Francisco também foi feito de silêncios, alguns estratégicos. Uns resultaram de forma genial, outras deixarão uma sombra sobre o seu pontificado. Quando um grupo de cardeais conservadores enviou uma listagem de perguntas ao Papa, no seguimento do Amoris Laetitia, pedindo respostas de “sim” ou “não” acerca de questões que o próprio documento insistia serem complexas e não passíveis de uma leitura binária, Francisco, pressentindo uma armadilha, optou por não responder; quando o então ex-núncio apostólico para os Estados Unidos, o Arcebispo Viganò, fez uma série de acusações graves contra Francisco, também optou pelo silêncio. O que na altura pareceu fraqueza veio a revelar-se sabedoria. Deixado a falar sozinho, Viganò foi revelando toda a sua total insanidade e desacreditou-se totalmente aos olhos do mundo. Menos bonito foi o silêncio em relação a temas como a perseguição dos Uigures, na China. Não pode haver dúvidas da posição do Papa sobre este assunto, mas Francisco optou por preservar as relações com o Governo chinês, e a falta de uma posição pública será uma mancha que dificilmente se apagará.
A unidade da Igreja
Este terá sido talvez o ponto mais problemático para o Papa Francisco. O estilo do seu pontificado hotilizou de imediato alguns sectores mais tradicionalistas da Igreja, e poucos foram os seus gestos ao longo destes anos de os incluir e aproximar. É verdade que estatisticamente os tradicionalistas são poucos, e é também verdade que podem ser paranóicos, mas não é por isso que devem ser desprezados e teria sido bonito ver mais gestos paternais para com eles. Francisco também assistiu a um aprofundamento da divisão entre a Santa Sé e duas igrejas nacionais muito importantes, a da Alemanha e a dos Estados Unidos. Se no primeiro caso, os alemães foram recusando muitas das tentativa de diálogo e aproximação vindas do Vaticano, no segundo a sensação com que se fica – sobretudo nos EUA – é de que Francisco se deixou mover e influenciar por um preconceito que via os católicos americanos como uniformemente conservadores, neo-liberais e inseridos numa lógica de “culture wars”. A verdade, claramente, é mais complexa. O próximo Papa terá agora o desafio complicado de assegurar a unidade de uma Igreja dividida não só pela questão do tradicionalismo, mas também pelo crescente fenómeno dos populismos e nacionalismos que afectam o mundo moderno e de reconstruir pontes com as Igrejas americana e alemã, sobretudo.
A cidade estado do Vaticano
Muitas vezes nos esquecemos que o Vaticano é, para além de sede de uma religião, um estado. Francisco foi eleito em parte para tentar pôr ordem na casa, numa altura em que o Vaticano estava embrenhado em escândalos financeiros. Pois 13 anos mais tarde esses escândalos continuam. Sucessivas pessoas contratadas ou nomeadas para proceder a importantes reformas viram os seus esforços frustrados por quezílias internas e muitos acabaram na órbita da própria justiça do Vaticano. É que, enquanto estado soberano, o Vaticano tem também soberania judicial. Acontece que mesmo nesse campo as coisas não correm bem… Os mega-processos a que assistimos nos últimos anos em Roma são já quase impossíveis de acompanhar e têm contribuído e muito para danificar a reputação de Roma. O caso mais recente é de trocas de mensagens entre o procurador-geral da Santa Sé e uma agente secreta muito dúbia, ela própria condenada pelos tribunais de Roma, para tentar assegurar a condenação de um cardeal. E tudo isto está a decorrer com um pano de fundo de uma crise econímica brutal, com o Vaticano praticamente falido. O cenário é mesmo de pesadelo para o próximo Papa, que, caso as coisas não se mudem muito rapidamente, poderá ter de supervisionar o desmantelamento da Santa Sé enquanto entidade soberana. Esperemos que não chegue a tanto.
“como por exemplo o acesso aos sacramentos para pessoas em situação canónica irregular, incluindo os divorciados e recasados.” – divorciados não estavam proibidos de se confessarem nem de receberem a Comunhão.
Olá Joana. Divorciados, só, não, como diz e bem. Mas aqui refiro-me a divorciados e recasados, não como categorias independentes, mas como uma só categoria. Sei que pode ser confuso…
Olá, Filipe
Li mal, então. Obrigada.
Não há sombras no Pontificado do Papa Francisco; há, isso sim, uma enorme coragem de mexer em aspectos que precisavam de intervenção urgente.
O próprio Papa Francisco assumiu que havia coisas que teria feito de forma diferente e isso é muito digno. De qualquer modo, o que há a fazer na Igreja é muito, por muito que o Papa Francisco tenha feito, e fez, e depende de todos nós.
O caminho de sinodalidade foi feito, e está a ser feito, com todos. O que é pena é que haja quem, neste caminho, não queira sair do sítio…
O Papa Francisco sempre agiu com Jesus no coração e querendo sempre que a Igreja, na sua actuação em cada um de nós, fosse espelho de Jesus. Se Jesus vivesse agora o que faria? Pois bem, vive, através de cada um de nós. O que nos é pedido hoje?!…