
Embora eu tenha crescido protestante, na verdade nunca fui muito um “tipo da Bíblia”. Gosto de São Tomás de Aquino, e de Agostinho e dos Padres do Deserto.
Se me perguntarem o que me trouxe para a Igreja Católica, lamento, mas não posso dizer, com sinceridade, que tenha sido a Bíblia. Normalmente respondo que foi o Espírito Santo. Mas se formos falar de livros, foi mais Platão, Aristóteles e Cícero, do que Amós, Oseias e Isaías. Anima-me um pouco saber que mesmo o grande Santo Agostinho não achava as Escrituras especialmente inspiradoras quando era mais novo. Ele preferia Virgílio. Mais tarde, claro, mudou de perspectiva. Digamos apenas que as Escrituras começaram a cantar-lhe, e ele começou a escutar a sua melodia.
Este ano tive o prazer de leccionar a nossa cadeira de “Escritura e História da Salvação”. Quando nos é dado tal privilégio, todas as vozes dos diferentes livros bíblicos, que quando era mais novo me pareciam estranhos e discordantes, começam a soar em conjunto como vários instrumentos numa magnífica sinfonia. Talvez o leitor tenha tido a mesma experiência, se foi às missas do Tríduo Pascal e prestou atenção às leituras. Estes são alguns dos melhores exemplos daquele princípio de Santo Agostinho de que o Novo Testamento está escondido no Antigo, e que o Antigo se manifesta no Novo.
Na Sexta-feira Santa escutamos a pungente leitura de um dos Cânticos do Servo Sofredor, de Isaías:
Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado.
Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas.
E depois ouvimos da Oração do Sumo Sacerdote, da Epístola aos Hebreus, sobre o “sumo sacerdote que penetrou os céus”, mas que pode “compadecer-se das nossas fraquezas”, porque “em tudo foi tentado, mas sem pecado”.
Chegamos então à Missa da Vigília Pascal e escutamos o relato da criação, do livro do Génesis, para que nos recordemos que o Deus que nos criou é o mesmo Deus que nos re-cria. Aquele que morreu na Cruz é o Verbo através do qual tudo se realizou. E depois ouvimos novamente a voz de Isaías que nos diz que “o teu esposo é o teu Criador”.
Esta imagem matrimonial terá sido inspirada pelo profeta Oseias, que escreveu de forma pungente sobre o amor de Deus pelo seu povo, relacionando-o com o seu próprio amor profundo pela sua mulher adúltera. O seu amor, escreve o Pe Louis Bouyer, “não tem a tendência de fechar os olhos às fraquezas da sua amada”.
De igual forma Deus; Ele “não espera que sejamos justos para nos amar”. Como escreve São Paulo: “Eis aqui uma prova brilhante de amor de Deus por nós: quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós.” Este amor é tão grande e tão poderoso que tem a capacidade de transformar o amado. Esta é uma justiça misericordiosa, que nos faz justos. Pode fazer aquilo que parece impossível: criar em nós um novo coração.

De igual modo, ouvimos o Profeta Ezequiel a referir-se à promessa de Deus de que:
Derramarei sobre vós águas puras, que vos purificarão de todas as vossas imundícies e de todas as vossas abominações.
Eu vos darei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne.
E isto deve recordar-nos de uma promessa semelhante, no livro do Profeta Jeremias, de que Deus fará “uma nova aliança (…) diferente da que concluí com seus pais no dia em que pela mão os tomei para tirá-los do Egito, aliança que violaram embora eu fosse o esposo deles”.
Lá está novamente esta imagem matrimonial. Nesta “nova aliança”, diz o Senhor:
Eu lhe incutirei a minha Lei; eu a gravarei em seu coração.
Algumas destas leituras podem ser omitidas, mas uma que nunca deve ser omitida é a leitura da Páscoa, no Livro do Êxodo. Esta recorda-nos aquilo que Cristo fez na Última Ceia, quando transformou o pão e o vinho da celebração da Páscoa (a “pasch”) no seu próprio Corpo e Sangue. Ele é, como diz João Baptista, “o Cordeiro de Deus, que retira os pecados do mundo”.
Em reconhecimento disto, João pergunta-se porque razão Jesus, um homem sem pecado, viria ter com ele para ser baptizado? O comentário de Bento XVI a esta cena ajuda-nos a compreender que, neste gesto: “Jesus carregou o fardo de toda a culpa da humanidade aos seus ombros” e “carregou-o para as profundezas do Jordão”, como faria mais tarde para a escuridão do sepulcro. “Ele inaugurou a sua actividade pública colocando-se no lugar dos pecadores. O seu gesto inaugural é uma prefiguração da Cruz.”
Uma vez que nos estamos a preparar para testemunhar os baptismos na Vigília Pascal, escutamos a admonição de São Paulo de que “fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte” para que “sepultados com ele na sua morte pelo baptismo” possamos ressuscitar com Ele para uma nova vida, uma vida tornada possível agora mesmo pela terceira pessoa que se revela no Baptismo de Cristo: o Espírito Santo, aquele que São Paulo diz “derrama em nossos corações o amor de Deus”.
Criação, espírito, água, purificação, um novo coração, morte e ressurreição, um amor tão grande que transforma o amado. As peças encaixam numa maravilhosa harmonia, como as vozes da Paixão de São João, de Bach; nas Vésperas da Santa Virgem; ou o Spem in Alium de Thomas Tallis. Só que agora não são apenas vozes e instrumentos humanos, é como se a harmonia se fizesse ouvir através da própria Criação. Continuo a gostar de Platão, mas ele não faz música assim.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 15 de Abril de 2025)
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