
Este artigo fala do casal Betty e Les Ruppersberger. Ao olhar desatento, parecem qualquer outro casal normal. E de certa forma é isso mesmo que eles são, mas mantenham-nos em mente, porque regressarei a eles daqui a pouco. Primeiro, contudo, quero que considerem o seguinte.
Um dos capítulos mais intensos da Sagrada Escritura é Génesis 18. Ao longo dos seus 33 versículos Deus descobre a maldade de Sodoma e Gomorra – as “cidades da planície” bíblicas. Então vem pessoalmente investigar o que se passa, disfarçado de três viajantes. Pelo caminho, aparecem a Abraão nos Carvalhais de Manre, descansam na sua tenda e prometem a Sara que terá um filho, apesar da sua idade avançada.
Depois, refere o Génesis:
Os homens partiram, pois, na direção de Sodoma, enquanto Abraão ficou em presença do Senhor. Abraão aproximou-se e disse: “Fareis o justo perecer com o ímpio. Talvez haja cinquenta justos na cidade: os farão perecer? Não perdoaríeis antes a cidade, em atenção aos cinquenta justos que nela se poderiam encontrar? Não, vós não poderíeis agir assim, matando o justo com o ímpio, e tratando o justo como o ímpio! Longe de vós tal pensamento! Não exerceria o juiz de toda a terra a justiça?”. O Senhor disse: “Se eu encontrar em Sodoma cinquenta justos, perdoarei a toda a cidade em atenção a eles”.
Apesar de ser (nas suas próprias palavras) uma mera “criatura de pó e cinza”, Abraão não deixa de ser um argumentador proficiente. Continua a apelar à justiça de Deus. Suplica-lhe que salve a cidade caso se encontrem apenas quarenta, ou trinta, ou até dez homens justos em Sodoma. Comovido, Deus assim promete. Infelizmente o resto da história não acaba bem. O abuso que Deus permite da sua paciência tem limites. Em Sodoma não se encontram sequer dez almas justas. Lot e a sua família, parentes de Abraão, são avisados para abandonar a cidade. Sodoma é destruída, a mulher de Lot olha para trás e é imediatamente transformada numa coluna de sal.
E o que é que tudo isto tem a ver com os normalíssimos Betty e Les?
No início da sua carreira, Les – ou Dr. Les, uma vez que se trata de um ginecologista obstetra – teve de decidir se faria abortos. Disse que não. Ele era católico, pelo menos de nome, mas tendo sido adoptado em criança decidiu que o aborto seria um procedimento com o qual não queria ter nada a ver.
Por outro lado, não tinha qualquer problema em oferecer contraceptivos e fazer esterilizações, e fê-lo durante muitos anos. Chegou longe na sua carreira e ganhou uma invejável reputação de liderança. Ganhava bem, mas sofria de stress na mesma proporção. O resultado era previsível. Teve um AVC em 1991 e hoje identifica esse momento com o que iniciou a mudança de trajecto da sua vida.
Les regressou à Igreja e aos sacramentos, mas continuou a fornecer contraceptivos e esterilizações como parte da sua prática médica. Foi só em 1999 – depois de um retiro, de uma conversa com um padre amigo, e com o encorajamento e apoio de Betty – que Les disse aos sócios da sua clínica – da qual ele tinha sido co-fundador – que já não iria prescrever mais contraceptivos ou esterilizações. Cortaram-lhe imediatamente o rendimento por um terço.

Betty e Les venderam a sua casa e mudaram-se para uma mais pequena. E fizeram mais – muito mais na vida – com menos. São casados há cinquenta e quatro anos. A Betty (e o Les é o primeiro a confirmá-lo) tem sido chave para tudo o que alcançaram. Juntos ensinaram métodos de planeamento familiar, preparação para o matrimónio, cursos de preparação para os sacramentos de iniciação cristã, deram dezenas de conferências sobre castidade, produziram um programa de rádio e participaram no movimento pró-vida.
Les foi presidente da Associação de Médicos Católicos, e membro da direcção durante 13 anos. Actualmente é o director clínico de três centros de atendimento a grávidas em risco, que salvaram 426 bebés de serem abortados só o ano passado, e 4000 outros ao longo de 15 anos de história. Em 2019 o Papa Francisco galardoou-os com a Ordem de São Gregório Magno, uma grande honra da Santa Sé, pelos seus anos de serviço à Igreja e à vida católica.
O meu ponto é este. É tentador sentir que estamos a viver numa cultura que perdeu o juízo e a alma; uma cultura que está ao nível das “cidades da planície” da Bíblia, com uma versão muito moderna de anarquia sexual 2.0 (e com os seus próprios “actos vergonhosos contranatura, tal como as que se cometiam em Sodoma”, como escreveu Santo Agostinho nas Confissões); uma cultura de conflito, distração e de satisfação de apetites materiais. As provas, a começar por décadas de matança de nascituras numa escala industrial, sugerem precisamente isso.
Mas há uma diferença. A Betty e o Les não estão sozinhos; são simplesmente duas boas pessoas entre não apenas cinquenta, trinta ou dez bons homens e mulheres, mas antes milhões de pessoas “ordinárias” que continuam, apesar de tudo, a ser o fermento da virtude na vida diária das nossas sociedades. Isso é uma fonte de esperança, que deve ser alimentada com coragem e com zelo, o que significa que devemos acordar e viver a nossa fé cristã como uma missão urgente e salvífica, um assunto de importância eterna.
Agostinho escreveu a sua maior obra, A Cidade de Deus, enquanto um mundo romano não muito diferente daquele descrito em Genesis 18 (nem muito diferente do nosso), desvanecia. Enquanto cristãos, o nosso destino e o nosso lar é o Céu. Mas no tempo que nos foi dado, somos peregrinos na Cidade dos Homens – seja qual for o nome da nossa particular “cidade da planície” – e somos chamados a torná-la melhor através do testemunho das nossas vidas, à medida que passamos. O nosso guia nessa peregrinação é a Palavra de Deus. Vivendo-a, contribuímos para a salvação de um mundo.
Francis X. Maier é investigador senior em Estudos católicos no Ethics and Public Policy Center. O seu mais recente livro é True Confessions: Voices of Faith from a Life in the Church .
Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na sexta-feira, 28 de Fevereiro de 2025)
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