
A solenidade dos “Apóstolos dos Eslavos”, os santos Cirilo e Metódio, observa-se liturgicamente no dia 14 de Fevereiro, embora passe culturalmente despercebida no meio dos corações do dia de São Valentim. Não faz mal.
Se a festa destes santos irmãos tivesse um oitavário, o deste ano seria recordado pelo mal que trouxe para as terras dos eslavos. Enquanto o mundo esfregava os olhos, incrédulo, o presidente dos Estados Unidos brindou-nos com os seus pensamentos, análise e propostas acerca da guerra da Rússia contra a Ucrânia, cujo terceiro aniversário se assinalou na segunda-feira.
Em 2022 os católicos da Ucrânia rezaram para que o presidente Vladimir Putin, da Rússia, tivesse uma conversão de coração. Este ano fazem o mesmo, mas em relação ao presidente Donald Trump. Os dois chefes de estado têm mundivisões semelhantes, em que as grandes potências dominam o mundo em seu redor. São João Paulo II, que era ele mesmo orgulhosamente eslavo, tinha uma visão diferente, que detalhou nos anos 80. O mundo vê agora claramente como essas visões contrastam.
Em 2014, quando Putin invadiu a Ucrânia e anexou a Crimeia, o secretário de Estado John Kerry ficou consternado, murmurando que se tratava de “um acto do Século XIX em pleno Século XXI”. Então deve ter ficado pasmado quando Putin fez o seu discurso sobre a Crimeia na Duma russa, regressando não até ao Século XIX, mas novecentos anos mais cedo, até à Crimeia onde “o Príncipe Vladimir foi baptizado”, notando que “este feito espiritual de adoptar a ortodoxia predeterminou as bases gerais da cultura, civilização e valores humanos que unem os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia”.
“Somos um só povo”, continuou Putin. “Kiev é a mãe de todas as cidades russas. A Antiga Rus é a nossa fonte comum e não podemos viver uns sem os outros”.
Em nome destes elos espirituais e fraternos, Putin invadiu e matou os seus irmãos eslavos. Fê-lo com a bênção de Cirilo, o Patriarca Ortodoxo de Moscovo, que se vê a si mesmo como oi pai espiritual dos ucranianos que estão a ser mortos pelas forças armadas russas. Por essa razão, o “pai e chefe” da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, o Patriarca Sviatoslav Shevchuk de Kiev, por estes dias a visitar os Estados Unidos e o Canadá, referiu-se à guerra como “sacrílega”.
Não é provável que o presidente Trump tenha grandes opiniões sobre o baptismo dos povos eslavos no Século X, mas deve ter umas quantas ideias sobre o Século XIX. Ao contrário de Kerry, que lamentou o pensamento do Século XIX, Trump celebra-o.
No seu segundo discurso de inauguração, Trump declarou que “os Estados Unidos voltarão a considerar-se uma nação em crescimento – uma nação que… expande o seu território”. Estamos perante um regresso à Doutrina de Monroe e do “destino manifesto”, palavras que Trump empregou com efeito bastante extravagante quando se referiu à demanda por chegar a Marte. Trump não se referiu à fundação dos Estados Unidos, mas referiu dois ex-presidentes, William McKinley (1897-1901) e Theodore Roosevelt (1901-1909). E Trump elogia muitas vezes aquela era – “tarifa é a mais bela palavra do dicionário”.
A Doutrina Monroe, anunciada no discurso sobre o Estado da União em 1823, instruía as potências europeias a considerarem o continente americano, tanto norte como sul, como a esfera dos Estados Unidos. Os dias do colonialismo europeu no quintal da América tinham chegado ao fim. No seu discurso sobre o Estado da União em 1904, Theodore Roosevelt notou que em certas situações a “adesão à Doutrina Monroe poderá forçar os Estados Unidos a … exercer um poder policial internacional”.
A América reserva-se ao direito de intervir no seu próprio quintal e adquirir novos territórios, como fez nos anos McKinley-Roosevelt. E se for para haver colónias neste hemisfério – Gronelândia, Panamá, Guantánamo – então que sejam dos Estados Unidos.
É fácil imaginar que Trump simpatizará com a forma como Putin pensa sobre o “mundo em redor” da Rússia. Esse termo, que é a tradução de blizhneye zarubezhye, tornou-se conhecido depois da dissolução da União Soviética, em 1991, quando os russos – com destaque para Putin – lamentaram a perda do seu “mundo em redor”.
Num artigo escrito em 1994, sobre a etimologia do “mundo em redor”, William Safire notou que “muitas das pessoas nesses países adjacentes, sobretudo os não-russos, rejeitaram esta versão de mão pesada da Doutrina Monroe que algumas figuras em Moscovo descreviam como “uma galinha a juntar os seus pintos”.

A Trump falta-lhe esse toque maternal galináceo, mas ele olha para a Gronelândia, para o Panamá e até para o Canadá como pintos a precisar de voltar para o galinheiro. De facto, a forma como ele fala sobre o Canadá – que não vê como um país verdadeiro, mas sim como o 51º Estado – faz eco da forma como Putin fala da Ucrânia como uma criação artificial que no fundo pertence à Rússia. Tanto Trump como Putin acreditam que os seus pintos não devem deixar o galinheiro.
Um respeitável comentador canadiano especulou recentemente sobre do que Trump e Putin falam durante as suas longas conversas, mesmo antes de ele ter regressado à presidência. Ele desconfia que Putin diz a Trump que os “grandes países controlam os seus quintais”. A Doutrina Monroe, emendada por Theodore Roosevelt e revitalizada por Trump, deve soar bem aos ouvidos de Moscovo de Putin.
O Patriarca Sviatoslav estava em Washington no dia em que Trump deu vazão à sua revolta contra a Ucrânia. É natural que ele espere que os dois mais importantes católicos na administração de Trump, o Vice-presidente J.D. Vance e o secretário de Estado Marco Rubio, possam ter algum grau de respeito pelo heroísmo dos católicos ucranianos, que durante a Guerra Fria formavam a maior Igreja clandestina do mundo, e que foram suprimidos e martirizados por Stalin em 1946.
Vance e Rubio fariam bem em conhecer a visão eslava de João Paulo II, que há 40 anos escreveu uma encíclica, hoje esquecida, chamada Slavorum Apostoli, Apóstolos dos Eslavos. O primeiro Papa eslavo já tinha declarado os santos Cirilo e Metódio co-padroeiros da Europa, juntamente com São Bento, em 1980. Os irmãos de Salónica foram missionários em terras eslavas no Século IX, na altura em que se começaram a desenvolver a cultura e as nações eslavas. Em 880, o Papa João VIII aprovou o uso do eslavónico antigo para a liturgia, que tinha sido traduzida por Cirilo e Metódio. A designação dos dois irmãos como padroeiros da Europa em 1980 pretendia marcar o XI centenário dessa histórica autorização.
“Em Veneza, diante dos representantes da cultura eclesiástica que por estarem apegados a uma visão poi demais acanhada da realidade eclesial, eram contrários essa sua visão, são Cirilo defendeu-a com coragem”, escreveu João Paulo na sua encíclica de 1985, “fazendo menção do facto de muitos povos já no passado terem introduzido e possuírem uma liturgia escrita e celebrada na própria língua, como os armênios, os persas, o abasgos, os georgianos, os sudetos, os godos, os ávares os tirsos, os khazars, os árabes, os coptas, os sírios e muitos outros.”
Os santos Cirilo e Metódio prepararam o terreno para o baptismo latino da Polónia (966) e o baptismo grego da Rus’ de Kiev (988). O milénio do cristianismo polaco em 1966 foi decisivo na formação pastoral de João Paulo e, enquanto Papa, em 1988, ele queria muito viajar para Moscovo para o milénio russo. Claro que os soviéticos recusaram, mas através de emissários e documentos oficiais, João Paulo sublinhou os aniversários milenares para promover a unidade espiritual tanto da Rússia como da Ucrânia. Por sua vez, essa unidade sustentaria a identidade espiritual comum de toda a Europa.
João Paulo rezava para que:
Toda a Europa … sinta cada vez mais a exigência da unidade religiosa cristã e da comunhão fraterna de todos os seus povos, a fim de que, superada a incompreensão e a desconfiança recíproca e vencidos os conflitos ideológicos, pela consciência comum da verdade, possa ser para o mundo inteiro um exemplo de convivência justa e pacífica, no respeito mútuo e na liberdade inviolada.
Um ano depois do milénio de Kiev, caiu o Muro de Berlim e em breve todo o império do mal, tanto interno como externo, se dissolveu. Os pintos saíram rapidamente antes que a raposa voltasse ao galinheiro.
Agora a “incompreensão e os conflitos ideológicos” voltaram. A raposa e o urso estão de volta. Putin faz apelos sacrílegos ao Século X para justificar a sua brutal agressão. E agora encontrou uma base de apoio no regresso de Trump ao Século XIX. A visão de João Paulo bebia de um património espiritual comum para nutrir uma pacífica harmonia entre nações. Já a visão Putin-Trump compreende a paz como a grande potência a subjugar os seus vizinhos.
Certamente o coração eslavo de João Paulo chora a partir do céu. Neste momento o Patriarca Sviatoslav, não obstante o facto de os católicos na Ucrânia serem uma minoria, está a ser um verdadeiro pai espiritual para os povos eslavos. Enquanto bispo, ele é o sucessor dos apóstolos bíblicos, mas neste momento é também sucessor de Cirilo e Metódio, apóstolos dos eslavos.
Raymond J. de Souza é um padre canadiano. Para além de ser membro da Cardus, é comentador de assuntos católicos.
(Publicado pela primeira vez no sábado, 22 de Fevereiro de 2025 em The Catholic Thing)
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