
O mês passado, enquanto vasculhava na minha secretária, encontrei uma folha branca com uma dúzia de nomes escritos com tinta preta. Reconheci-a logo.
Todos os anos, em Novembro, o liceu e a faculdade em que andei convidam os seus ex-alunos a enviar os nomes de entes queridos que tenham morrido, para serem recordados nas missas nas respectivas capelas. Esta página perdida tinha sido a minha tentativa, há uns anos, de listar a nuvem de testemunhas que, por razões que já esqueci, não chegaram nunca à capela. Mas o catolicismo é a fé das segundas chances, por isso com a descoberta da folha o Espírito Santo inspirou em mim uma nova ideia.
Arranjei um tempo para visitar o Santíssimo Sacramento e, com uma caneta preta e três folhas brancas, ajoelhei-me, rezei ao Espírito Santo e invoquei o meu anjo da guarda para me ajudar a recordar todos os que partiram antes de mim e que precisam das minhas orações. Comecei então a registar nomes.
Avancei por categorias. Primeiro a família: avós, os três bisavós que conheci, tios-avós, o meu primo André. Depois vieram os amigos, tanto os meus como os dos meus pais. Depois padres da minha paróquia e da escola. Conhecidos da minha juventude. Conhecidos da vila onde cresci. Conhecidos da actual vila onde moro há 17 anos. Vítimas do 11 de Setembro que conheci. Alunos. Colegas. Vizinhos. Professores. Mentores. Ao todo, 110 pessoas.
Com cada pessoa surgia uma memória, uma imagem do morto a agir na minha vida. Nenhuma delas foi especialmente profunda. Eu com cinco anos, debaixo da mesa da cozinha para me esconder do meu avô. Gestos do dia-a-dia de colegas e vizinhos. Sorrisos de alunos na sala de aula. Refeições com amigos.
Estas memórias ligam-me a estas pessoas, e elas a mim, através do abismo dos tempos. Neste mês dedicado aos fiéis defuntos tenho estado a cumprir o meu dever para com cada um, a praticar aquele acto final da nossa relação deste lado da eternidade: rezo para que Deus tenha misericórdia deles e que os receba no seu seio.
No final do Credo professamos a Comunhão dos Santos e o perdão dos pecados. Este, conseguido à custa do sangue de Cristo, torna possível aquele. Através do baptismo entramos na Comunhão dos Santos, pois Deus adopta-nos como seus filhos. Podemos não nos sentir especialmente santos, mas marchamos nessa hoste não por causa daquilo que fazemos, mas porque Deus nos escolheu. O baptismo não é, por isso, um fim. É o princípio de um caminho que termina com uma união íntima com Deus, em que apenas podemos entrar quando tivermos sido purificados de toda a mancha de pecado.
Não se trata de uma tarefa que possamos completar a sós. “O Deus que te criou sem ti”, ensina Santo Agostinho, “não te salvará sem ti”. A esta tese, sem qualquer desrespeito pelo Doutor da Graça, podemos acrescentar, “nem sem os teus irmãos”.

A nossa colaboração com a graça de Deus fica sempre aquém. Precisamos que os nossos companheiros cristãos, irmãos e irmãs pelo baptismo, contribuam também para a nossa salvação. Eles fazem-no nesta vida através das incontáveis interacções que têm connosco, para o bem e testando a nossa paciência. E fazem-no depois das nossas mortes, através das orações.
Memento mori, contempla a morte, e na verdade devemos fazê-lo este mês, enquanto o final do ano e a chegada do inverno nos recordam de que também nós chegaremos, um dia, ao final, e que devemos agir em conformidade. Mas ao mesmo tempo outro mandamento nos chama: Memento mortuorum, contempla os mortos, aqueles que passaram antes de nós. As nossas orações fazem-lhes bem. E fazem-nos bem a nós também.
Com cada oração vem uma memória, e com cada memória sentimos a nossa pertença à Comunhão dos Santos que transcende o tempo. “A sociedade”, escreveu Edmund Burke, nas suas Reflexões sobre a Revolução em França, é uma parceria “entre os vivos, os mortos e aqueles que estão para nascer”. Nascendo de Deus e não da vontade dos homens, o baptismo na Comunhão dos Santos confere uma relação mais profunda, pois em Cristo todos – vivos e mortos – são família junta em peregrinação. Alguns já chegaram ao destino, outros mal arrancaram, e outros ainda estão a caminho, procurando ajuda para lá chegar.
Cada pessoa que compõe a Comunhão dos Santos é membro do Corpo de Cristo.
“Se um membro sofre, todos sofrem; se um é exaltado, todos regozijam” (1 Cor 12,26). O mistério da morte está rodeado de sofrimento e de regozijo. Todas as 110 almas pelas quais rezo este mês sofreram a morte, e eu sofri a sua perda. Mas Nosso Senhor prometeu-nos: “Agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria” (João 16,22).
Passados estes anos as minhas memórias geram uma alegria subtil, parecida com a que sinto quando vejo criancinhas a brincar. Porque em cada memória brilha uma vislumbrar de vida, e cada vida é um dom de Deus que não tinha de existir. As nossas vidas permanecem interligadas na Comunhão dos Santos. A oração é o pão que partilhamos. As memórias são o vinho com que brindamos. O céu é a casa que habitamos juntos.
Agora, com cada oração por elas vem uma esperança. De que, quando completar a minha peregrinação, voltar-nos-emos a ver na luz do Senhor, e os nossos corações sentirão uma alegria sem fim.
David G. Bonagura, Jr. leciona no Seminário de São José, em Nova Iorque. É autor de Steadfast in Faith: Catholicism and the Challenges of Secularism, que será lançado no próximo inverno pela Cluny Media.
(Publicado pela primeira vez no domingo, 17 de Novembro de 2024 no The Catholic Thing)
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