Permitam-me começar com um “disclaimer”. Não vou manifestar aqui qualquer opinião pessoal sobre o valor de cada um dos candidatos. Eu tinha uma preferência, mas não sou guru político, nem faltam outras pessoas para seguir para saberem opiniões sobre política americana.
Contudo, esta eleição – devo dizer, aliás, eleições – vai ter repercussões religiosas. Claro que não são as únicas, mas são essas, e apenas essas, que pretendo aqui relevar.
Liberdade religiosa
A vitória de Trump deixa descansados muitos dos que se preocupavam com as eventuais ameaças à liberdade religiosa que uma presidência de Kamala Harris poderia representar.
Não é só de Harris. Há muito tempo que os democratas nos Estados Unidos passaram a ver a liberdade religiosa não como um direito fundamental, mas como um privilégio dado a uns quantos fanáticos, que facilmente pode ser revogado. Foi nesse sentido que Obama tentou obrigar todas as entidades patronais, independentemente de eventuais objecções religiosas ou de consciência, a financiar a compra de contraceptivos através do ObamaCare; que os aparelhos judiciais e políticos de Estados democratas procuraram obrigar empresários – desde fotógrafos a pasteleiros – a colaborar com celebrações de casamentos homossexuais, não obstante as suas objecções religiosas; e que Harris disse agora, com todas as letras, que não pretendia permitir qualquer excepção para garantir o direito ao aborto, ou seja, que o direito de uma mulher poder abortar se sobrepunha sempre ao direito à objecção de consciência de um médico, ou da recusa por questões religiosas de uma instituição de saúde.
Nesse sentido, qualquer executivo democrata dos últimos anos tem sido uma ameaça à liberdade religiosa. O contraponto é que os EUA continuam a ter um Supremo Tribunal que regula estes assuntos e esse órgão tem um longo historial de apoio rigoroso à liberdade religiosa, já assim era antes de Trump conseguir nomear três juízes conservadores durante a sua primeira presidência, e assim deve continuar por muito tempo, até porque neste momento todos os juízes do Supremo são mais novos do que o Presidente, e por isso não é provável que haja nomeações durante estes quatro anos. Daí que a ameaça colocada pelos democratas acabava por ser menos grave do que se poderia pensar escutando apenas a sua retórica, uma vez que o Supremo Tribunal funciona como travão para as medidas mais radicais.
Em todo o caso, um Executivo Trump certamente será mais amigo da liberdade religiosa nestas questões de consciência. É, porém, legítimo perguntar se essa amizade se manterá nos casos de organizações cristãs que dão apoio humanitário a imigrantes ilegais, ou a pessoas sem-abrigo. Afinal, a consciência não serve apenas para defender as causas que normalmente são associadas aos conservadores.
Defesa da Vida
Olhemos agora mais especificamente para a questão da defesa da vida, sobretudo no seu início e no final.
Penso que um dos grandes erros de Kamala terá sido focar tanto a narrativa do aborto, bem como a insistência parva de tantos democratas de que uma vitória de Trump enviaria a América para a Idade Média. Em primeiro lugar, uma sociedade que valoriza a vida de todos os seres humanos é, a meu ver, uma sociedade mais avançada, mais livre e mais igualitária. Mas sobretudo porque desde a revogação de Roe v. Wade que a questão do aborto se decide ao nível dos Estados. Donald Trump disse claramente que vetaria qualquer tentativa de impor uma proibição a nível nacional – tal como promove orgulhosamente a fertilização in vitro – e só nos seus sonhos mais tresloucados é que Kamala Harris poderia acreditar que teria capacidade de inscrever o direito ao aborto na Constituição. Esse enfoque na questão do aborto acabou, por isso, por não resultar para Harris.
É importante notar que, nestas eleições, vários Estados tinham a votos propostas relacionadas com o aborto e aqui, infelizmente, o campo pró-vida perdeu em quase toda a linha.
Arizona, Colorado, Maryland, Missouri, Montana, Nebrasca, Nevada e Nova Iorque aprovaram medidas que consagram ou alargam de alguma forma o direito ao aborto nesses estados. E atenção que destes, Trump venceu no Arizona, Missouri, Nebrasca e Nevada.
Só em dois estados em que foram chumbadas propostas pró-aborto, no Dakota do Sul e na Flórida, e nesta última apenas porque o sim ficou aquém dos 60% necessários para passar.
Este cenário só pode ser visto como uma derrota para o movimento pró-vida nos EUA, que deveria esperar que a onda republicana permitisse manter ou impor novas restrições ao aborto em vários estados.
Apenas o estado da Virgínia Ocidental teve um referendo sobre a eutanásia, neste caso sob o eufemismo de suicídio assistido. A proposta de proibir a prática venceu, de forma marginal, o que é obviamente uma boa notícia.
Depois temos a questão da pena de morte. Aqui penso que a eleição de Trump e a vitória de uma ala mais dura do Partido Republicano terá efeitos negativos para quem sonha com o fim das execuções nos EUA. Dito isto, não se pode dizer que quatro anos de Executivo Biden tenham feito grande coisa nesse sentido, nem se previa grandes avanços com Harris.
Termino esta secção com uma palavra sobre a dignidade. Ser pró-vida, como eu sou, é sobretudo um reconhecimento da dignidade infinita inerente a qualquer ser humano, em qualquer fase da sua vida. Por isso, qualquer atentado à dignidade de qualquer ser humano deve chocar e entristecer-nos. Temo sinceramente que com o seu discurso agressivo, com os constantes avisos sobre “inimigos internos” e a linguagem usada para descrever e desumanizar os imigrantes, ainda que ilegais, este conceito de dignidade inerente acabe por ser prejudicado nos Estados Unidos ao longo dos próximos quatro anos. Este é um risco verdadeiro e, a meu ver, extraordinariamente grave. Espero estar enganado.
Ucrânia
A guerra da Ucrânia não é uma guerra religiosa, embora existam várias dimensões religiosas no conflito. Acima de tudo, creio que é uma guerra civilizacional, entre um bloco autoritário, que não respeitas as liberdades essenciais – incluindo a liberdade religiosa – e que se quer impor à força, e outro que, tendo muito de criticável, assenta na ideia das liberdades pessoais essenciais e tem mais respeito pela dignidade humana. Uma vitória da Rússia na Ucrânia é, a meu ver, uma ameaça para toda a civilização ocidental e este é, a meu ver, o grande, grande risco de uma presidência de Donald Trump.
Se Trump abandonar a Ucrânia está, na prática, a abandonar a Europa e a cuspir nos valores ocidentais que permitiram também aos Estados Unidos chegar ao ponto de desenvolvimento a que chegou. É um tiro nos pés, se não mesmo na cabeça.
Terra Santa
Não me parece que haja muito a assinalar aqui. Biden mostrou-se incapaz de travar a chacina generalizada de tudo quanto mexe em Gaza e a invasão do sul do Líbano. Pode-se argumentar que não o fez precisamente para não perder votos e que talvez o fizesse se Harris tivesse ganho, mas o importante é que não o fez. Trump dificilmente fará melhor, embora valha a pena recordar que o último plano de paz a ter algum efeito prático na Terra Santa tenha sido durante a sua presidência. Israel continuará a contar com o apoio inflexível dos EUA, sem grandes surpresas.
Igrejas
Resta ver como é que as igrejas vão reagir com Trump na presidência.
Dentro da Igreja Católica, Trump tem apoiantes e tem adversários. Esta linha divisória acompanha a já tradicional divisão entre conservadores e progressistas, e segue a lógica das culture wars que há décadas minam a sociedade civil americana. Dito isto, sei de muitos católicos educados, esclarecidos e equilibrados que estavam de lados opostos da barricada e é falsa a narrativa – usada por ambas as facções mais radicais – de que um verdadeiro católico só podia votar neste ou naquela.
Mais significativo, parece-me, é o efeito que a eleição terá na continuada polarização também dentro das igrejas cristãs. Se na Igreja Católica sempre existe algum equilíbrio ao nível da hierarquia, já nas igrejas protestantes e evangélicas aumenta a tendência de desvio para o chamado nacionalismo cristão, que não me parece ser um movimento saudável.
Pessoalmente, espero ver uma Igreja Católica nos EUA sem medo de confrontar Trump nas questões em que ele age contra a doutrina da Igreja, uma Igreja a defender sempre e sem medos a dignidade de todas as pessoas, bem como de qualquer aproveitamento que Trump possa tentar fazer do cristianismo para sua vantagem pessoal, como já fez no passado. O mundo está cheio de exemplos de homens maus que foram bons líderes, mas se não cabe à Igreja fazer política, esta tem sempre a obrigação de denunciar a maldade quando esta ergue a sua face, convidando à verdadeira conversão.
Curiosamente, a ideia de que todos os apoiantes de Trump são cristãos fervorosos é errada. Segundo Ryan Burge, que vos aconselho a seguir, a maior subida de Trump nestas eleições foi entre pessoas não praticantes de qualquer religião, com um aumento de seis pontos percentuais.
De resto, Trump manteve-se igual, segundo os dados disponíveis, entre eleitores católicos – 52% – mas desceu entre aqueles que se identificam como protestantes (64% para 59%), judeus (32% para 31%) e mórmones (66% – 60%), mas terá tido uma subida abrupta entre muçulmanos, passando de 6% em 2020 para 30% agora. Claro que, dada a diferença entre os dois universos, a queda entre protestantes pesa mais do que a subida entre muçulmanos, mas não deixa de ser interessante.