No dia 31 de Outubro, véspera de Todos os Santos, muitos dos nossos irmãos protestantes celebraram o Dia da Reforma, recordando aquele dia em 1517 em que o monge agostiniano Martinho Lutero pregou as suas famosas 95 Teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha.
Essa data recorda-me sempre o meu regresso à Igreja Católica, há cerca de trinta anos. Alguns dos factores que mais influenciaram esse regresso foram as dúvidas persistentes sobre a relação correcta entre a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura. (Outra era uma fome crescente pela Eucaristia, menos uma questão intelectual que do coração; citando Pascal, o coração tem razões que a razão desconhece.)
Estarei eternamente grato às igrejas protestantes evangélicas que alimentaram a minha fé ao longo de tantos anos, incluindo a prática saudável de ler todos os dias a Bíblia. Mas em meados da década de 90, depois de ter gravitado para a ala reformada/presbiteriana do protestantismo, comecei uma demanda que acabaria por me levar de volta para as fileiras do catolicismo.
Já antes desse regresso eu estava a ficar cada vez mais preocupado com a longa crise de autoridade no protestantismo mainstream, que também se começava a manifestar nas igrejas evangélicas. Estava particularmente desconcertado com a realização de que o protestantismo, fosse qual fosse a sua expressão, simplesmente não possuía a resistência para confrontar esta situação. Pois tornava-se cada vez mais evidente que os meros apelos à Bíblia, por mais sinceros que fossem, estavam a ser cada vez menos eficazes contra os ácidos corrosivos da modernidade.
A questão da autoridade interpretativa era o problema que os reformadores protestantes não conseguiam resolver, o que explica o facto de não ter havido apenas uma reforma protestante, mas várias. O apelo comum à sola scriptura não fornecia um caminho para as várias facções protestantes resolverem as suas diferenças – e estamos a falar e diferenças substanciais, como sobre doutrinas centrais como o baptismo e a eucaristia. A não ser a espada (a espada literal, e não a do Espírito), o que levou a uma fase sangrenta em que os católicos, lamentavelmente, também desempenharam um papel fundamental.
Foi lendo o novo Catecismo da Igreja Católica – essa grande sinfonia em quatro andamentos, segundo a descrição de João Paulo II – que dei os meus primeiros passos hesitantes rumo à Grande Tradição. Foi aí que descobri o que queria dizer Jaroslav Pelikan quando se referiu à Tradição como a fé viva dos mortos (em contraste como tradicionalismo, que definiu como a fé morta dos vivos).
A beleza da Grande Tradição parecia brilhar de cada página do Catecismo, confirmando a observação do compositor austríaco Gustav Mahler de que a tradição não é a adoração das cinzas, mas a preservação do fogo. (Mahler era Judeu, por isso sabia alguma coisa sobre a importância da tradição). Cheguei à conclusão de que era a isto que Jesus se referia quando prometeu aos seus discípulos que quando viesse o Espírito da Verdade, guiá-los-ia a todos para a verdade (João 16,13).
Mas havia outra dúvida a moer-me o juízo. Trata-se, quando pensamos no assunto, da questão mais óbvia que podemos colocar sobre a Bíblia. De onde veio? Claro que nós partilhamos com os nossos irmãos protestantes ortodoxos a crença na inspiração divina da Sagrada Escritura. Mas como é que a Igreja veio a reconhecer e a autenticar os 27 livros que compõem aquilo que hoje reconhecemos como o Novo Testamento? Afinal de contas, a Bíblia não veio acompanhada de um índice.
Mais, não parece haver qualquer padrão objectivo e seguro para estabelecer o cânone bíblico. Basta ver as próprias dúvidas de Lutero sobre se a Epístola de São Tiago devia ser incluída na Bíblia ou não.
Por isso, quando os reformadores protestantes apelaram à Sola Scriptura estavam a dar muito por adquirido. Na sua aceitação do cânone das Escrituras estava implícita a assunção de que o mesmo Espírito que tinha inspirado os escritos sagrados tinha orientado a Igreja, de forma infalível, a reunir estes livros, e só estes, para formar o Novo Testamento. Mas como foi, precisamente, que o Espírito fez isso? Foi através do Magistério da Igreja Católica, que aprovou formalmente o cânone do Novo Testamento no Concílio de Roma, em 382.
O Catolicismo dá nome e substância àquilo que para os protestantes apenas se mantém implícito. Que foi através da autoridade viva da Igreja, exercida em continuidade com os apóstolos e incorporada na Grande Tradição, no depósito da fé, que nos chegou o Novo Testamento. Dito de forma mais imples, sem Traditio, não há Scriptura.
Há outro benefício adicional de nos afastarmos da ideia da sola scriptura que apenas descobri mais tarde. Quando a Bíblia deixou de ter de carregar todo o peso que lhe era atribuído pelos protestantes, o seu sentido, o seu “porquê”, tornou-se mais claro. Esse objectivo é o de nos conduzir à salvação através da fé em Jesus Cristo e de nos dotar de meios para viver de forma agradável a Deus, como São Paulo explica tão claramente na clássica passagem sobre a inspiração divina da Escritura (ver Timóteo 3, 15-17).
Mas também se tornou mais claro aquilo que a Bíblia não é: não é um livro com informação sobre todo o género de coisas, estilo enciclopédia. Essa ideia atraiu ao longo dos anos muitos protestantes, que acabariam, de forma pouco sábia, por associá-la a uma visão altiva das Escrituras. Mas como observou correctamente o anglicano C.S. Lewis, a Bíblia não é suposto “satisfazer a curiosidade, iluminando toda a criação, por forma a torná-la autoexplicativa, respondendo a todas as questões”.
Deus deixou as questões sobre o “Livro da Criação” para nós, seus colaboradores, explorarmos. Fazemo-lo através da ciência e de outras aplicações da razão humana. Nisto tinha razão Galileu, quando disse que a Bíblia não se ocupa de “como andam os céus”, mas sim de “como se chega ao Céu”.
Luis E. Lugo foi professor universitário e executivo de uma fundação, até se reformar. Vive actualmente em Rockford, Michigan.
(Publicado pela primeira vez na quinta-feira, 31 de Outubro de 2024 em The Catholic Thing)
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