
Existe uma cena no Paraíso Perdido, de John Milton, que me encoraja no combate às más ideias e as irrealidades que assumem ou ajudam a espalhar, qual contágio. O Serafim Abdiel, cujo nome significa “Servo de Deus”, refuta Satanás em cada ponto que o tentador avança para persuadir os seus seguidores, que está a arregimentar para se revoltarem contra o Filho de Deus.
Abdiel fá-lo com uma combinação de argumentação precisa e de zelo apaixonado. Mas Satanás rejeita a verdade, gozando tanto com ela como com o seu mensageiro. Em vez de concordar com um ponto sequer, compromete-se cada vez mais com a falsidade, indo ao ponto de negar que seja sequer uma criatura.
“Não conhecemos época nenhuma em que não existíamos como hoje”, gaba-se. “Ninguém antes de nós não conhecemos, quando chegou a sempiterna massa.” Depois diz a Abdiel para ir entregar a notícia ao Filho de Deus, de que a guerra estalou, e termina com uma ameaça: “Vai-te, foge, antes que a hórrida ruína te obste a fuga”.
Mas Abdiel não se acobarda. Está rodeado de milhares e milhares de rebeldes, de ouvidos moucos às suas palavras e desdenhosos do seu zelo, que julgam “sem-razão, disparate, desatino”.
Mas uma só alma devota da verdade é mais forte que milhares de mentirosos e tolos. Os rebeldes ratificaram o seu divórcio da verdade e agora, diz Abdiel a Satanás, “outros decretos já sem apelação se te fulminam”. E abandona o campo, desprezado por todos:
Desta sorte Abdiel se desagrava.
Entre tantos infiéis é fiel só ele;
Cercado por inúmeros falsários,
Firme, arrogante, intrépido, inconcusso,
Não se seduz, não treme, não se abala;
Nem torva multidão, nem tanto exemplo,
Separá-lo puderam da verdade
Ou mudar-lhe o constante pensamento;
Ele, posto que só, guardou sem mancha
Sua lealdade, seu amor, seu zelo.
Eis foge deles, indo largo espaço
Entre mofas e ultrajes dos perjuros;
Mas ele superior afronta o p’rigo
E com desprezo audaz retorque insultos,
Virando costas às soberbas torres
A destruição já pronta destinadas
Não há dúvida de que Milton pensava em si mesmo como um Abdiel, tão profundamente comprometido com aquilo que acreditava ser a verdade teológica que não viu forma de se tornar membro de qualquer igreja. É este individualismo que o marca como o primeiro dos modernos, embora noutros sentidos seja mais correcto olhá-lo como o último homem do mundo antigo, da Idade Média e do Renascimento.
Mas deixemos de parte esse deslize biográfico, que não diz respeito ao drama desta cena, uma vez que Abdiel não está a partir para estar sozinho, nem está a defender uma doutrina particular da sua criação. Ele deixa o campo de Satanás para se juntar ao campo do Deus eterno, e é nesse sentido que o leitor católico do nosso tempo pode ver em Abdiel o modelo de uma devoção mais profunda à Igreja como repositório da verdade.
Mas como é que nos comprometemos com a verdade? Temos as Escrituras, o Catecismo e o Magistério da Igreja desde o seu início. Mas nem sempre é claro como estes ensinamentos se aplicam às actuais polémicas, as pessoas discutem o seu alcance e o seu significado e as palavras humanas são incapazes de atingir as realidades últimas.

Assim, vemo-nos frequentemente no meio de uma confusão que não é inteiramente da nossa lavoura. A pressão psicológica para acompanhar aqueles que nos são mais próximos é intensa, e esse acompanhamento inclui tanto concordar com a proposição como tomar parte numa acção, seja de forma activa ou permissiva.
No homem a acção e a visão são inextricáveis: agimos de acordo com o que vemos, ou pensamos ver, e vemos, ou pensamos que vemos, de acordo com o que fazemos. Não temos qualquer compreensão da realidade fora das ideias, e não temos ideias que não sejam afectadas por aquilo que fazemos.
Sendo assim, podemos compreender que o pecado e a falsidade estão interligados, e a partir daí podemos concluir que existem vários sinais fiáveis para nos conduzir para evitar cair nas areias movediças.
- As conclusões a que chego sozinho são provavelmente falsas, porque parciais em ambos os sentidos da palavra: Só vejo em parte, e sou parcial às minhas ideias e aos actos que elas justificarão.
- Aquilo que depende das paixões do momento é provavelmente falso, porque a verdade é eterna e não varia consoante o calendário.
- Aquilo que segue o seu próprio caminho, excluindo ou ignorando outras considerações, é provavelmente falso, porque as verdades iluminam-se e edificam-se, em vez de obfuscar em lusco-fusco ou na escuridão.
- E, claro, tudo o que conduz ao absurdo ou à contradição é certamente falso.
A falta de rigor com a verdade é, na minha opinião, o contrário daquilo que Jesus diz sobre o Reino de Deus. O comerciante de pérolas preciosas encontra aquela pérola de grande preço e vende tudo o que tem para a adquirir. Ele não se contenta com uma pedra brilhante que não é pérola nem usará, presumo, a pérola como um pisa-papéis ou batente para uma porta.
É ainda uma forma de desprezar a obra de Cristo e o ensinamento dos apóstolos. “Outrora éreis trevas”, diz São Paulo à Igreja de Éfeso, “mas agora sois luz no Senhor.”
São Pedro encoraja cada crente a louvar a Deus: “que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. Sozinhos estamos todos nas trevas. Quem tenta ver Deus com a sua própria luz não verá sequer a si mesmo, mas um ídolo de si. Mas se acolher a luz como foi revelada por Deus, e não segundo os critérios do seu tempo, começará a raciocinar bem e poderá conhecer-se a si mesmo.
E então, enquanto o mundo enlouquece, como tende a fazer de tempos a tempos, poderá fazer como Abdiel e terá a certeza de que não estará sozinho, independentemente do que diz o mundo e os seus orgulhosos príncipes.
Anthony Esolen é professor na Thales College, tradutor e autor. Entre os seus livros incluem-se Out of the Ashes: Rebuilding American Culture, Nostalgia: Going Home in a Homeless World, e o recente The Hundredfold: Songs for the Lord. Podem visitar o seu novo site: Word and Song.
(Publicado pela primeira vez no Domingo, 13 de Outubro de 2024 em The Catholic Thing)
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