
Estamos todos cansados de ouvir dizer que a nossa sociedade está polarizada. “Polar”, ou “relativo aos polos geográficos” é um termo mais dramático do que “dividida”. A referência a “polos opostos” representa a separação máxima possível de duas facções.
A educação hoje em dia assume que a Europa, a começar com a Reforma, se polarizou entre católicos e protestantes (e mais tarde entre anglicanos e puritanos em Inglaterra) que travaram guerras terríveis um contra o outro sobre assuntos religiosos. Depois de tanto lutar, as religiões declararam uma trégua, aceitando ignorar as diferenças religiosas e conviver aos níveis económico e político.
Esta trégua chegou aos nossos dias. Segundo o historiador Christopher Dawson: “uma vez que os homens admitiram o princípio de que um herege pode ser um bom cidadão (e até que um infiel pode ser um bom homem de negócios), tenderam inevitavelmente a ver este campo de entendimento prático como o mundo verdadeiro, e a esfera exclusiva da religião como o mundo privado, seja de fé pessoal, seja apenas de opinião privada”.
A sociedade contemporânea enterrou a religião de tal maneira no mundo privado que a invocação de Deus em público leva alguns a ter um esgotamento, ou a mover processos em tribunal.
Mas se a religião é privada e marginal, então como é que a nossa sociedade pós-cristã se tornou tão polarizada? Não devemos todos dar-nos bem agora que a nossa política já não é afectada pelas crenças religiosas?
A crença religiosa está longe de ser o único tipo de crença, isto é, a afirmação do que uma pessoa pensa ser verdade. Muitos tipos de crença – política, social, profissional, organizacional – animam em certa medida as vidas de toda a gente. Algumas crenças podem ser totalmente triviais, mas para nós podem ser a coisa mais importante do mundo, porque a verdade, seja como for entendida ou desentendida, compele-nos à adesão e à acção.
Logo, as crenças, seja de que tipo ou de que forma forem, podem dividir-nos. Dois executivos podem discutir sobre a melhor hora para iniciar uma reunião, dois amigos podem discutir amargamente sobre qual é o melhor clube, marido e mulher podem gritar um com o outro sobre a melhor cor para os azulejos da casa de banho. A insistência numa crença sob outra pode danificar relações ou até levar à violência.
A crença, por isso, leva inevitavelmente ao conflito, que faz parte da natureza humana, ou seja, não é culpa da religião. O que é que ajuda a ultrapassar o conflito? A disposição para concordar numa crença diferente, que una os opostos numa nova causa. Os executivos podem ultrapassar a sua disputa sobre o horário da reunião, unindo esforços para ultrapassar o próximo desafio. Os amigos que discutem sobre desporto podem “concordar em discordar” e essa aceitação partilhada traz de volta a harmonia. Os esposos ultrapassam o mau gosto em decoração um do outro em nome do amor que os une.
E a nossa sociedade actual, polarizada sobre crenças políticas e culturais, podia, em teoria, encontrar outras crenças que servissem de base a uma união mais estável.
A religião não pode, por isso, ser o elemento tóxico público que se alega. As pessoas têm todo o tipo de crenças e em muitos casos estão dispostas a lutar sobre elas até à morte. A preservação da União americana foi uma dessas causas; a defesa da democracia no mundo foi outra, bem como a defesa da honra pessoal. A lista é interminável, das crenças grandes às mais triviais.

No que toca a política, o desacordo sobre crenças políticas é tão comum como sobre a religião. O rácio de opiniões políticas e de denominações religiosas é de um para um. Então porque é que a crença religiosa continua a ser estigmatizada como sendo causa de conflito?
Porque geração após geração continua a acreditar na mentira de que a religião é um assunto privado e irrelevante para a vida humana. A política, em contraste, é exaltada por ser de impacto mais imediato: onde construir uma estrada, ou que lei passar. Por isso, a sociedade permite a polarização política, mas rejeita a polarização religiosa, pois numa sociedade materialista que privatizou a religião, só algumas crenças é que são consideradas importantes.
Esta mentira desumaniza, porque silencia os impulsos religiosos que existem dentro de cada pessoa. A religião está na natureza dos seres humanos, enquanto forma de se relacionarem com Deus, que conhecemos interiormente através da consciência, e acima de nós pela razão. Ou seja, estamos construídos para conhecer Deus e a religião é a verdade que nos ajuda a construir uma relação com Ele.
Uma vez que esta relação com Deus é tão essencial a quem somos, acaba por extravasar-nos e tocar a vida pública. “A religião é um elemento cultural dinâmico”, escreveu Dawson, porque motiva as acções que tornam um povo único: a sua moral, as suas leis, o lazer, a arquitectura, a arte, a música, a filosofia e a literatura: “As obras dos homens que mais perduram no tempo são os templos dos deuses”.
Logo, quando negamos a Deus o seu justo lugar nas nossas vidas, incluindo na dimensão pública das nossas vidas, ficamos aquém das pessoas que devemos ser. A modernidade já completou esse processo de desumanização. A psicologia e a tecnologia minaram a nossa percepção interior de Deus, enquanto o materialismo científico descartou a nossa crença racional de que Deus é a fonte de tudo.
O conflito sobre a religião é uma parte necessária da vida humana, tal como é o conflito sobre tudo o resto. A verdade existe, e a nossa compreensão ou domínio imperfeitos da mesma, que também fazem parte da vida, levam inevitavelmente a desacordo, discussão, divisão e polarização.
Neste tempo de polarização política chegou a altura de corrigir a mentira que se ensina nas escolas. Sim, o desacordo religioso já levou a polarização e guerra. Mas desde essa altura o mesmo aconteceu por causa de incontáveis outras crenças. O problema não é a religião, são as pessoas.
O cínico poderá responder que com a privatização da religião os homens ficaram com menos uma coisa sobre a qual lutar. E isso até pode ser verdade, mas sem a religião também perderam a melhor cura para a polarização, a divisão e conflito: A graça de Deus.
David G. Bonagura, Jr. leciona no Seminário de São José, em Nova Iorque. É autor de Steadfast in Faith: Catholicism and the Challenges of Secularism, que será lançado no próximo inverno pela Cluny Media.
(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 4 de Setembro de 2024 no The Catholic Thing)
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