As cerimónias de abertura dos grandes festivais desportivos são normalmente coisas a evitar. Pelo menos é assim com os torneios de que eu mais gosto, que são o mundial e o europeu de futebol. Mas os Jogos Olímpicos sempre foram uma excepção e foi com pena que não pude assistir ao espetáculo de abertura dos Jogos de Paris, por estar a cumprir a função muito máscula de supervisionar um churrasco.
Nessa noite, quando me fui deitar, comecei a dar conta das reacções e do facto de a organização ter achado bem, e de bom gosto, fazer uma encenação com travestis e pessoas em poses claramente provocantes e sexualizadas, que parecia muito uma representação da Última Ceia.
Deixem-me abordar já este assunto, porque não quero torná-lo o centro deste texto. Eu não sou a pessoa certa para dizer se a intenção dos organizadores era mesmo fazer troça da Última Ceia, ou se de facto estavam a tentar evocar os bacanais dos deuses gregos. Já vi até uma explicação boa e convincente de que a própria representação dos bacanais, feitas dessa forma, radicam de uma revolta protestante contra a imagética tradicional católica da Última Ceia, o que torna a discussão irrelevante, ainda que os organizadores não o soubessem.
O que posso dizer é que qualquer pessoa devia ter percebido que aquela imagem ia evocar nas mentes da maioria dos espectadores a imagem da Última Ceia e iria ser interpretada como uma paródia do Cristianismo. Logo aí, seria de evitar. Mas vou mais longe, e digo que mesmo que as personagens estivessem dispostas de forma que não se confundisse com qualquer simbologia cristã, a utilização de travestis e de pessoas transgénero daquela forma é tão completamente estereotipada, que só por si representa o oposto daquilo que é o espírito dos Jogos Olímpicos. Seria o mesmo que pedir aos atletas de países africanos que entrassem de tanga e com lanças na mão, aos chineses que entrassem todos sentados de perna cruzada a comer arroz com pauzinhos e aos alemães de braço direito estendido. Seria quase tão estúpido como reduzir França, um país com longa história e uma cultura riquíssima, a uma encenação do genocídio da Vendeia, ou à guilhotina…. ah, esperem… a guilhotina não faltou.
Durante alguns dias várias pessoas me perguntaram se iria comentar tudo isto. Hesitei, porque acima de tudo esta vontade de chocar, mais do que ofensiva parece-me absolutamente infantil. Mantenho essa opinião. Os organizadores conseguiram dar um grande tiro no pé, ao não resistir à tentação de reduzir todo o seu esforço de meses, ou anos, de organização de um grande espetáculo, a duas ou três cenas infantis, pensando que estão a ser muito originais quando na verdade estão ao nível de tantos que já tentaram ganhar os seus cinco minutos de fama a ofender as pessoas de fé apresentando crucifixos dentro de frascos de urina, ou levando a palco Cristos homossexuais. É o equivalente adulto àquelas crianças que se acham incrivelmente rebeldes por gritar “cocó chichi!”
Mas então porque é que escrevo? Porque quero falar, a propósito de tudo isto, do verdadeiro escândalo dos Jogos Olímpicos, que também a mim estava a passar despercebido até o Papa o referir.
Sim, podem não ter dado por isso, mas o Papa falou dos Jogos Olímpicos, e não o fez para cair na armadilha de comentar as infantilidades da cerimónia de abertura. Foram estas as suas palavras:
“Enquanto há tantas pessoas no mundo a sofrer por causa de calamidades e de fome, continuamos a fabricar e a vender armas e a queimar recursos, alimentando guerras grandes e pequenas. Este é um escândalo que a comunidade internacional não deve tolerar e que contradiz o espírito de fraternidade dos Jogos Olímpicos que acabam de começar. Não nos esqueçamos, irmãos e irmãs: a guerra é uma derrota!”
Esta é a função de um Papa. Meter o dedo na ferida. Enquanto acompanhamos com entusiasmo os Jogos Olímpicos (e bem!); enquanto nos preocupamos com provocações infantis e manifestações de mau gosto, quantos de nós páram para pensar mais do que dois minutos nas pessoas que continuam com as vidas desfeitas na Ucrânia ou no Sudão? Quantos pensamos nos povos da Terra Santa, de todos os lados da barricada, que não conseguem ver um futuro de paz no horizonte, e saem de casa sem saber se vão voltar, ou se a própria casa lá estará ao final do dia?
Claro que a solução não é sentarmo-nos em casa a chorar os azares do mundo, ignorando o grande espetáculo que são os Jogos Olímpicos. Pelo contrário! Vejamos e vibremos com esta grande festa do desporto, mas sem esquecer que o seu espírito de irmandade humana será sempre um sinal de contradição num mundo onde as pessoas se matam sem dó nem piedade e, pior, nós já nem nos chocamos com isso.