Há mais de uma década que tenho estado a acompanhar os casos de abusos sexuais cometidos no universo da Igreja Católica em Portugal, mantendo uma cronologia actualizada no blog, que se encontra aqui.
Muita coisa mudou ao longo deste tempo, e nunca a questão foi encarada com tanta seriedade como agora.
Nas últimas semanas houve dois casos, contudo, que são inéditos no contexto português e que desafiam o paradigma até agora instalado, e um terceiro que também levanta algumas questões.
O primeiro caso tem a ver com um padre que foi suspenso não por cometer abusos, mas por não ter agido de forma suficientemente célere e conveniente para evitar que um leigo, com responsabilidades na sua paróquia, os cometesse. Que eu saiba é o primeiro caso deste género em Portugal e mostra que o problema a combater não é apenas o abuso sexual de menores, mas também o encobrimento de situações, ou inacção perante casos conhecidos, mesmo que não sejam praticados por membros do clero. É por isso um caso que deve servir de alerta para todos os sacerdotes e pessoas em posição de responsabilidade na Igreja.
O segundo caso envolve um padre que foi dispensado da actividade pastoral por enviar mensagens inapropriadas num grupo de WhatsApp em que constavam, entre outros, alunos menores, da escola da qual era capelão.
Este caso é relevante na medida em que parece testar os próprios limites do que constitui uma situação susceptível de ser considerada um abuso. Por um lado, o senso comum dir-nos-á que o envio de uma piada de mau gosto (e do que se sabe, estamos a falar disso mesmo), ou a utilização de linguagem discutível, num grupo – seja virtual, seja presencial – não é caso para grande alarme. Por outro, este caso demonstra que a própria definição daquilo que a Igreja, e a sociedade, consideram abusos está em evolução.
Em parte, isto acontece porque muitos abusos sexuais começam com coisas aparentemente inofensivas, e a troca de mensagens é uma delas. Não estou a dizer, de forma alguma, que este caso se enquadra, mas compreendo que num sistema que se quer rigoroso é preciso que mesmo estes casos, uma vez denunciados, sejam investigados pelas comissões diocesanas que têm sido montadas em cada diocese.
Importa, a este respeito, recordar que a averiguação não é nada mais que isso. Estes casos estão a ser averiguados porque houve uma denúncia e têm de ser averiguados. E os padres em questão foram dispensados da actividade pastoral porque, havendo uma investigação, as regras mandam que assim seja. Isso não significa que já tenham sido condenados por o que quer que seja. O melhor mesmo, nesta altura, é deixar as respectivas comissões fazerem o seu trabalho.
O terceiro caso, divulgado no dia 26 de julho pelo Observador, remonta aos anos 90 e diz respeito a um sacerdote que foi acusado de cometer pelo menos um acto de abuso sexual de menores, mas cuja vítima terá pedido a D. Manuel Clemente, quando se encontraram os dois, para não denunciar o caso nem o divulgar, apenas que garantisse que o padre não o pudesse repetir.
Esta situação não é inédita e coloca a Igreja num dilema. Respeitar a vontade da vítima e ficar de mãos atadas quanto à denúncia às autoridades, ou denunciar o caso, expondo assim a vítima e violando a sua vontade, correndo o risco de, com essa atitude, dissuadir outras vítimas de vir falar?
Não é uma questão fácil, mas eu tendo para achar que em todos os casos deve-se denunciar. Mais, num país como Portugal, as dioceses têm contactos suficientemente próximos com as autoridades para poder alertar para um padre sobre quem existe uma suspeita credível, sem expor a vítima, mas permitindo a estas que investiguem para ver se encontram mais dados que apontem para a existência de abusos, eventualmente contra outras vítimas. Claro que estamos a falar de um caso que se passou na década de 90 e esta minha posição é informada por muito do que se passou entretanto, o que pode justificar que há 30 anos a decisão da diocese tenha sido diferente.
Em todo o caso, não nos podemos esquecer que Portugal está a passar agora por uma fase que outros países já atravessaram há muito, e em circunstâncias muito mais graves, e por isso podemos e devemos aprender com essa experiência.
Termino com outra questão que me parece muito importante. O juiz Souto Moura disse, numa entrevista recente, que desde Maio a comissão de Lisboa, a que ele pertence, recebeu denúncias relativas a dois casos. Um é o caso das mensagens, mas o outro não é público, e sabemos que não é o caso reportado agora pelo Observador, porque segundo a Renascença, a comissão diocesana não recebeu qualquer denúncia relativa a este sacerdote. Se o segundo caso referido por Souto Moura não é público, é porque sobre esse caso não foi publicado qualquer comunicado pelo Patriarcado, o que nos deve motivar a pensar sobre a estratégia de comunicação do Patriarcado, e da comissão diocesana, neste campo dos abusos.
Uma das lições mais claras das crises de abusos noutros países é do valor da transparência. No começo, a imprensa era frequentemente apontada como sendo um dos inimigos, por estar a expor publicamente os males na Igreja, mas já se percebeu que isso foi um factor crucial para obrigar a uma mudança de paradigma que coloca as vítimas em primeiro lugar.
Temo que a Igreja em Portugal ainda esteja a olhar para a comunicação e para a transparência nestes casos apenas pela lente da reacção. Se a notícia se torna pública, ou se se sabe que vai tornar-se pública, então sai um comunicado, mas em caso contrário não se fala de nada.
Quando li a entrevista de Souto Moura tentei contactar a comissão diocesana para tentar obter alguns dados. Nunca pedi o nome da pessoa em causa, mas quis saber se se trata de um sacerdote, de um leigo, de um caso recente, de um caso de abusos ou de encobrimento, etc., com o objectivo de poder juntar este caso à cronologia, mas não obtive qualquer resposta, nem sequer uma mensagem a dizer que não pretendiam responder.
Este não me parece ser o caminho a seguir. Sei que não sou o único jornalista a queixar-se disto.
Não é fácil, sei que não é, e sobretudo não é claro. O envio de um comunicado a dizer que um padre foi suspenso pode ser meio caminho andado para que a identidade do mesmo seja revelada, mas o não reconhecimento público da existência sequer do caso é também um factor essencial para facilitar o seu encobrimento. Não estou a acusar ninguém de encobrir, apenas a dizer que é melhor que não existam os pressupostos que o facilitem.
Claro que há quem queira apenas escândalos para vender jornais e “dar clicks”, mas outros há, e julgo que não poucos, que acreditam que a verdade e a transparência, também aqui, nos libertarão.