Em nada lamento viver no estrangeiro neste período eleitoral. O Atlântico pode não me proteger completamente na patetice e do ódio que estão a afogar a democracia americana, mas pelo menos serve de filtro.
O meu diagnóstico da nossa decadência cívica não é propriamente original: é difícil não ver a coincidência entre a crescente disfunção da vida pública americana e a queda da prática e crença religiosa. A religião, afinal de contas, fornece sentido e valores capazes de ultrapassar o partidarismo. Desde que enviei o meu boletim de voto pelo correio há umas semanas, contudo, tenho estado a reflectir sobre uma dimensão particular da disfunção americana. Enquanto teólogo sacramental, tenho estado a pensar sobre rituais cívicos.
Há uns 1600 anos Santo Agostinho argumentou que os ritos visíveis são necessários para manter as comunidades religiosas unidas. Sem esses ritos, avisou, as sociedades fragmentam-se (Contra Faustum 19,11). Hoje chamaríamos a essa observação sociologia da religião, e não teologia, uma vez que ele defendia que se aplicava tanto a religiões falsas como verdadeiras. Ao longo das últimas décadas surgiu uma disciplina académica dedicada a estudar o como e o porquê dos ritos. Chama-se estudos rituais e tem abalado muitos dos preconceitos dos estudos religiosos do século XIX.
Agostinho estava a escrever especificamente sobre comunidades religiosas, mas as suas observações aplicam-se igualmente à vida cívica. O artigo de 1967 de Robert Bellah, “Religião Civil na América”, argumentava que a sociedade política americana depende de uma herança comum de simbolismo religioso que se sobrepõe aos variados compromissos religiosos dos seus cidadãos. Esta herança inclui crenças, retórica, narrativas e um conjunto de cerimónias cívicas que tocam acordes espirituais – desde cantar o Hino Nacional em jogos de basebol às invocações nas cerimónias de inauguração de presidentes.
Claro que nenhum destes factores equivale aos sacramentos. A explicação de Santo Agostinho dá uma das razões para a necessidade dos rituais religiosos, mas está longe de ser a mais importante. A religião civil não pode prometer a salvação, e no que diz respeito à sentido último, é na melhor das hipóteses um suplemento para a vida espiritual muito mais rica fornecida pelas confissões religiosas. Parte da promessa da república americana, afinal de contas, consiste em proteger a livre expressão dessas confissões. Mas a religião civil pode, ao menos, nutrir os valores comuns necessários para que um povo diverso consiga viver em conjunto como uma nação.
Por isso, mesmo que sejam teologicamente fracos, os ritos civis são necessários. Sejam coroações reais, ou discursos de concessão nas noites eleitorais, estes ritos ajudam a legitimar o poder que o governo exerce sobre a sua população. Não obstante toda a nossa retórica democrática sobre a “vontade do povo”, o sentido desta frase é tudo menos evidente. Receber 50% dos votos mais um não é propriamente um garante de governação justa.
Abraham Lincoln venceu a eleição de maior consequência da história americana com apenas 39,8% do voto popular. Na Europa os sistemas parlamentares empossam frequentemente partidos derrotados. O instinto dos pais fundadores de proteger a nossa nação da vontade pura do povo, utilizando um sistema de limites e garantias, parece-nos particularmente sensata hoje.
Aconteça o que acontecer no dia 5 de Novembro, o resultado representará, na melhor das hipóteses, cerca de metade da população. Precisamos de um pouco de cerimonial para nos convencermos a alinhar com isso
O cerimonial ajuda porque os rituais funcionam através de símbolos, colocam os actos políticos num enquadramento simbólico que sugere um sentido maior. Podemos não gostar dos resultados de uma eleição em particular, mas ao invocar a bandeira, o nascer do sol sobre Fort McHenry e a Constituição, recordamo-nos do projecto alargado com o qual estamos comprometidos e do qual cada eleição é apenas um momento.
Um dos nossos problemas recentes – não sendo nem o maior, nem o menor – é que do ponto de vista ritual as últimas eleições têm sido um desastre. Os ritos cívicos americanos já são algo parcos – não somos Habsburgos nem Windsors – mas isso torna os poucos que temos ainda mais essenciais.
As eleições são um dos mais importantes. Apesar de eu já ter votado pelo correio, fico triste por ver uma diminuição da afluência às urnas no dia da eleição. Sem convergir numa mesa de voto do bairro, o voto solitário altera o sentido do acto em termos simbólicos. Ver os nossos vizinhos no dia da eleição, fazer fila com eles, envolve-nos num acto comum, ainda que as nossas escolhas democráticas sejam diferentes. O esforço necessário para acorrer à mesa de voto investe-nos mais concretamente no rito. O voto solitário enviado pelo correio é simbólico de um eleitorado alienado.
Tanto o voto antecipado como a diminuição dos debates presidenciais – sendo que os debates fazem parte da nossa mitologia desde Lincoln e Douglas – mudaram o nosso entendimento dos actos eleitorais. Os eleitores já não desempenham o papel de jurados que escutam atentamente os argumentos de ambos os lados. Em vez disso, são como os soldados de infantaria russos, que devem ser simplesmente mobilizados para esmagar o outro lado com números.
Nenhum eleitorado, como é evidente, age como um júri razoável e neutro, mas a forma das nossas eleições ajuda a moldar a nossa compreensão do que estamos a fazer. Tal como no nosso sistema legal, as formalidades alertam-nos para pensar bem as coisas.
A noite eleitoral é também um tipo de liturgia, e estamos a pagar um custo por nos afastarmos das suas rubricas. O pintar do mapa dos estados de encarnado ou azul, seguido dos discursos de concessão e de vitória, enviavam-nos para a cama em estado de euforia ou de desapontamento, mas depois acordávamos e continuávamos com a nossa vida.
O ritual envolvido ajudava-nos a canalizar as paixões políticas, para que não se descontrolassem. Quando as disputas eleitorais se estendem até Dezembro, o nosso tecido social começa a rasgar-se. O simbolismo de julgamento, deliberação e decisão é substituído pelo paradigma da guerra de trincheiras.
Escrevo sem saber o que vai acontecer em Novembro, e, francamente, ansioso sobre quanta da nossa vida cívica ainda pode ser remendada. Os católicos, pelo menos, podem procurar sabedoria e perspectiva de uma tradição muito mais profunda do que qualquer coisa que a religião civil oferece. Os nossos sacramentos colocam-nos dentro da única narrativa que é verdadeira no sentido mais profundo do termo, e não devem ser dados como adquiridos. Como Agostinho já sabia, mexer nos nossos ritos leva a que muita coisa se perca.
O Pe. Anthony R. Lusvardi, SJ, é professor de teologia sacramental na Universidade Gregoriana, em Roma. É autor do livro Baptism of Desire and Christian Salvation (Catholic University of America Press, 2024) e uma variedade de outros ensaios, contos e artigos. Parte da sua obra pode ser consultada no seu site tonylusvardisj.com.
(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 29 de Outubro de 2024 em The Catholic Thing)
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