Na newsletter da semana passada referi que a Igreja Ortodoxa da Bulgária iria eleger um novo Patriarca. Disse também que embora os três candidatos pudessem ser considerados russófilos, o principal candidato a ganhar tinha tido o gesto de convidar o Patriarca de Constantinopla para estar presente na entronização do eleito, o que podia ser entendido como um gesto conciliador. As coisas não correram bem como se esperava, mas já lá vamos.
Em primeiro lugar, é preciso explicar que na comunhão de Igrejas Ortodoxas cada Igreja é autocéfala, isto é, autónoma ou independente. Isto não impede as Igrejas de estarem em comunhão umas com as outras, mas significa que não existe uma figura como o Papa na Igreja Católica, que preside sobre todas e pode impor decisões e medidas se for caso disso.
Dentro das suas relações de comunhão, as Igrejas reconhecem alguns casos de primazia de honra, isto é, Patriarcas de Igrejas mais antigas, ou que foram sedes apostólicas, e que por isso têm um estatuto superior, mas não um poder efectivo. O principal de entre esses é o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu.
Constantinopla, antiga capital do Império Romano do Oriente, é uma diocese associada a Santo André, mas acima de tudo tornou-se para todos os efeitos a “Nova Roma”, quando o Império Romano do Ocidente caiu nas mãos dos bárbaros, e mais tarde, quando as Igrejas do Oriente e do Ocidente se separaram.
Contudo, quando também Constantinopla caiu, desta vez pela mão dos turcos, a comunidade cristã da cidade diminuiu drasticamente. Actualmente está reduzida a umas cinco mil almas. Para além disso, o Patriarca de Constantinopla vive numa relação de grande tensão com as autoridades turcas, o que também não contribuiu para manter a sua influência internacional. Perante esta situação, a Igreja de Moscovo, sendo a mais numerosa de todas as ortodoxas da comunhão bizantina e enquanto capital de um superpoder político e militar, começou a reivindicar para si o título de “Terceira Roma”, e a afirmar-se como o verdadeiro centro da ortodoxia mundial.
A guerra na Ucrânia não se explica por esta realidade, mas o factor religioso também faz parte, uma vez que Moscovo afirma que a única Igreja Ortodoxa legítima na Ucrânia é a Igreja que é submissa a Moscovo. O Patriarca Bartolomeu, porém, reconheceu formalmente a legitimidade de uma outra Igreja, centrada em Kyiv, o que levou Moscovo a cortar formalmente relações com Constantinopla.
Dito isto, é importante sublinhar que quando se fala de ser pró-Moscovo no contexto do mundo ortodoxo, isso não é em contrapartida com ser pró-Ucrânia, mas sim pró-Constantinopla. Simplificando, pode-se dizer que as Igrejas de tradição grega – Grécia e Chipre, Jerusalém e Alexandria – alinham com Constantinopla, mas as Igrejas eslavas tendem a alinhar mais com Moscovo. A Bulgária estava numa posição periclitante. O antigo Patriarca não reconheceu a autocefalia da Igreja Ucraniana, mas teve alguns gestos de boa vontade, incluindo enviar uma delegação a Constantinopla que concelebrou uma liturgia com um representante da Igreja Ucraniana. Moscovo reagiu como seria de esperar, cortando relações com os membros da delegação que estavam presentes, mas os sinais pareciam positivos de uma aproximação a Constantinopla.
E é nesse sentido que a eleição na Bulgária correu mal para Bartolomeu.
É que ao contrário do que se esperava, o vencedor da eleição na Bulgária não foi o Metropolita Gregório, que estava a gerir a Igreja desde a morte do antigo Patriarca, e que endereçou o convite a Bartolomeu. O vencedor foi antes o Metropolita Daniel, agora Patriarca de Toda a Bulgária e Metropolita de Sófia. E com apenas 52 anos, podemos contar com ele durante largos anos!
E acontece que, em comparação com Gregório, Daniel pode ser considerado um falcão pró-Russo, que no passado não hesitou em denegrir a decisão de Bartolomeu de reconhecer a autocefalia da Igreja Ucraniana face a Moscovo e até justificou a invasão Russa da Ucrânia, papagueando propaganda russa. A situação é tal que o importante abade do Mosteiro dos Santos Cosme e Damião resignou quando soube que Daniel tinha sido eleito, afirmando que ele não é digno de assumir o cargo de Patriarca. Podem conhecer mais detalhes sobre todo este assunto aqui.
O que é que isto interessa? Interessa porque esta é apenas uma das muitas esferas em que Moscovo procura consolidar a sua influência. Se é assim no campo religioso, imaginem como não será no campo político, económico e militar! Vale sempre a pena estar atento aos meandros e tentar perceber quem está a movimentar-se e de que forma, para tentar sair por cima.