A notícia da semana passada de que a Santa Sé abriu (finalmente) um processo contra o arcebispo Carlo Maria Viganò, que deverá levar à sua excomunhão formal, é tudo menos surpreendente.
O caso em si tem pouco que se lhe diga. O próprio Viganò confirmou todas as suspeitas quando disse que recebia a notificação do processo como uma condecoração, apelidando o Papa Francisco – a quem trata por Bergoglio – e toda a Igreja pós Concílio Vaticano II como um cancro.
Mais interessante é rever um pouco da vida de Viganò até agora, para compreender como um homem respeitável pode descer a estes níveis de loucura.
Antes de ser enviado como Núncio Apostólico para os Estados Unidos, Viganò trabalhou como secretário geral da Comissão Pontifícia para a Cidade Estado do Vaticano e, como tal, estava na frente da luta contra a má gestão no Vaticano, iniciada por Bento XVI. De início, como recorda aqui Ed Condon, teve bastante sucesso nessa missão, não obstante a oposição interna que teve de enfrentar, conseguindo que a Comissão passasse de um défice de 10 milhões para um lucro de 40 milhões num só ano. Ao mesmo tempo, contudo, sugeriu ao Papa que o Vaticano devia abandonar o euro, para não ser sujeito aos regulamentos europeus em matéria bancária. Esse conselho não foi aceite.
Tudo parece indicar que Viganò tinha uma personalidade difícil que o levou a criar inimizades com muitos dos seus colegas no Governo do Vaticano. Quando foi sugerido que mudasse de funções, escreveu ao Papa a dizer-se vítima de uma campanha orquestrada e que estaria a ser castigado por expor corrupção. O que poderia parecer apenas mais uma disputazinha entre clérigos na Santa Sé tornou-se público, contudo, com a publicação dessas cartas no escândalo do Vatileaks. Tomando conhecimento da carta, os implicados desmentiram-na e, quando ficou claro que Viganò tinha perdido a confiança da equipa com a qual tinha de trabalhar, foi enviado para os EUA como representante diplomático do Papa.
Foi para Washington, mas foi contrariado, e os relatos da sua prestação enquanto núncio não são muito edificantes, dizendo-se que frequentemente se queixava durante audiências, e chegava mesmo a chorar.
Nos Estados Unidos esteve envolvido em algumas polémicas. Foi acusado de ter ordenado que dois bispos suspendessem a investigação que estava a ser feita ao Arcebispo John Nienstedt – uma alegação que negou; foi acusado de ter recebido e aceitado presentes substanciais oferecidos pelo bispo Michael Bransfield, que entretanto tinha resignado por acusações de abusos sexuais; e foi acusado de ter organizado, contrariando recomendações em contrário do clero americano, um encontro entre o Papa Francisco e Kim Davis, uma funcionária pública não católica que se tinha tornado famosa ao ser despedida por se recusar a oficiar em casamentos homossexuais, causando assim uma polémica mediática que ameaçava ensombrar a visita do Papa.
Aos 75 anos o arcebispo apresentou a sua renúncia ao cargo, como manda o direito canónico. Estávamos em 2016. Mas foi dois anos mais tarde, em 2018, que as polémicas envolvendo Viganò começaram de verdade. Foi nesse ano que se tornou público o escândalo envolvendo o cardeal Theodore McCarrick, que acabaria por ser expulso do estado clerical e demitido do colégio dos cardeais quando se tornaram públicas alegações de graves abusos sexuais praticados sobre menores e sobre seminaristas.
Nesta altura Viganò escreveu uma carta em que acusava o Papa Francisco de ter protegido e até reabilitado McCarrick – que tinha sido discretamente proibido de exercer certas actividades ministeriais pelo Papa Bento XVI – apesar de saber muito bem que ele era um predador sexual.
É aqui, obviamente, que Viganò entra em conflito aberto com o Papa Francisco. Recorda-se que nesta altura os dois já tinham chocado por causa do episódio de Kim Davis, durante a visita de Francisco aos Estados Unidos, pelo que é possível que já existisse um certo grau de inimizade.
A verdade é que na altura as revelações de Viganò, disputadas pelo Vaticano, geraram muita simpatia, sobretudo entre grupos de católicos que não gostavam de Francisco e do seu estilo, incluindo as facções mais tradicionalistas.
Interessantemente, quando se perguntou ao Papa Francisco se não iria responder ao arcebispo e ex-núncio, ele disse que nestes assuntos o melhor era deixar a coisa estar, e que o tempo se encarregaria de clarificar a situação, desafiando os jornalistas a “fazer o seu trabalho”. Foi uma posição que causou bastante desconforto para muitos católicos: como é que o Papa não respondia publicamente a acusações extremamente graves feitas contra ele? Acabou, contudo, por ser uma posição presciente e sagaz do Papa.
Não estou, com isto, a dizer que Viganò inventou aquelas alegações, não estou de forma alguma em posição de saber o que realmente aconteceu, ou o que é que Francisco sabia ou não sabia sobre McCarrick. Digo apenas que, independentemente da verdade ou não das alegações, a estratégia do Papa funcionou em pleno.
Viganò viu a sua popularidade explodir entre nas franjas da Igreja, onde sobra o militantismo, mas a sanidade nem por isso. Foi elevado ao estatuto de herói por tradicionalistas radicais, extrema-direita, sedevacantistas e teoristas da conspiração de todo o género. Como o Papa não lhe deu cavaco, ficou a falar apenas para esta nova hoste de seguidores e, a partir daí, foi a desgraça.
Em 2020, quando começou a pandemia, Viganò abraçou firmemente a causa dos negacionistas. Criticou as limitações à liberdade religiosa – que de facto existiram – mas disse também que as medidas anti-Covid eram um sinal da emergência de um Governo Global e de uma Nova Ordem Mundial.
No dia 7 de Junho do mesmo ano escreveu ao então Presidente americano Donald Trump, dizendo que alguns bispos católicos estavam alinhados com a Nova Ordem Mundial e com a fraternidade universal maçónica, comparando as restrições à Covid e as manifestações contra as mesmas a uma guerra bíblica entre a luz e as trevas. Trump publicitou a carta, encorajando todos a lê-la.
Nesse mesmo mês já estava a negar o Concílio Vaticano II, dizendo que este tinha permitido a existência de uma falsa igreja que existia em paralelo com a verdadeira Igreja.
Em Julho de 2020 acusou o Papa de seguir a “agenda homossexual da Nova Ordem Mundial”.
Em Outubro de 2020 escreveu uma nova carta a Trump avisando do “grande reset” e, novamente, da Nova Ordem Mundial. Disse que Trump representava a derradeira defesa contra a ditadura mundial. Nesta altura já se referia a Francisco como Jorge Mário Bergoglio. As críticas ao Papa Francisco apenas subiram de tom, entretanto, chegando a acusá-lo de ser um “falso profeta” e um “servo de Satanás”.
Em 2022, dias depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, Viganò achou boa ideia escrever um manifesto de 24 páginas sobre o conflito, em que papagueou as justificações dadas por Putin para invadir a Ucrânia e disse que só uma aliança com a Rússia pode salvar o mundo do “monstro tecno-sanitário transhumanista globalista”
Em Março de 2023 descreveu a Rússia como o “último bastião de defesa contra a barbárie”.
Em Janeiro de 2024 surgiram alegações de que Viganò tinha sido reordenado bispo à condição pelo bispo lefebvriano Richard Williamson, que por sua vez já foi expulso da SSPX fundada por Lefebvre e viu a sua própria excomunhão reconfirmada, depois de ter sido levantada num gesto de boa vontade por Bento XVI devido a comentários antissemíticos.
E isto é apenas uma amostra. Pelo meio, Viganò afirmou várias vezes que tinha recorrido a uma vida de clandestinidade, por medo de ser assassinado pelo Vaticano. Julga-se que continua a viver nos EUA, uma vez que o seu fascínio pela Rússia enquanto último bastião do Cristianismo não é suficiente para se mudar definitivamente para Moscovo.
Eis a consumação da descida à loucura total, e mais uma prova provada de que embarcar numa guerra contra o Papa conduz quase inevitavelmente ao abandono da Barca de Pedro e da própria razão.
É que Viganò é apenas mais um numa longa lista de homens e mulheres que se deixaram consumir pela revolta e pela dúvida e acabaram no cisma e no universo paralelo alucinado do sedevacantismo. Mais recentemente vimos o que se passou com as freiras de Belorado, em Burgos, Espanha, e com Taylor Marshal, nos Estados Unidos.
Que isto sirva de aviso, incluindo para os muitos que, entre nós, expressaram a sua admiração por Viganò e outros como ele.