Muitos dos nossos leitores já conhecerão a história de São Nicolau de Mira no Concílio de Niceia. Diz-se que quando ele ouviu Ario a pronunciar heresias ficou de tal forma enfurecido que atravessou a sala e esbofeteou-o na cara. Claro que esse tipo de comportamento não deve ser imitado ou encorajado. Ainda assim, há algo de admirável. Talvez Nicolau não tenha controlado devidamente o seu temperamento, mas pelo menos levou o dogma a sério e compreendeu que um erro dogmático esvaziaria o Cristianismo do seu sentido, de toda a sua bondade e beleza. Pelo menos entendeu que o dogma era algo pelo qual valeria a pena lutar.
Pode parecer descabido estar a falar disso agora. Na verdade, contudo, é uma história perfeitamente adequada à festa que celebrámos no domingo – não só porque diz respeito à Santíssima Trindade, mas porque realça a importância do dogma em si.
Até ao domingo passado o calendário litúrgico comemorou e celebrou eventos históricos: Natal, a Apresentação, Páscoa, Ascensão, Pentecostes, etc. Estas são festas mais simples de compreender, porque se passaram n nosso mundo e envolveram pessoas como nós. Podemos apontar para os lugares e imaginar as cenas. Mas a solenidade de domingo passado não é sobre um evento, é sobre um dogma, e isso é sempre mais difícil de transmitir. Sugiro então que pensemos um pouco na importância do dogma em si, e no facto de o celebrarmos. Devemos aprender a apreciar, como fazia São Nicolau, o drama do dogma.
Muitos, incluindo muitos católicos, acharão estranho, ou até pouco saudável, que se celebre um dogma. A palavra ainda está associada – e bem – a autoridade e obrigação de acreditar, coisas aberrantes para a nossa cultura. Pior ainda, hoje celebramos o dogma maior, o mais dogmático de todo os dogmas, se assim quiserem. Que Deus é uno em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo. Que cada pessoa é inteiramente Deus e que juntos são um só Deus. Que o Pai gera o Filho, o Filho ama o Pai, e o Espírito é o amor, ou a ligação, entre os dois.
A maioria das pessoas acham tudo isto bastante chato e as suas mentes anseiam por mais histórias e eventos – mais acção. Mas este dogma é a razão de ser de todas as outras solenidades, de tudo o que celebrámos já até agora. Podemos pensar que o Domingo da Santíssima Trindade é apenas uma adenda à Páscoa, Ascensão e Pentecostes, mas Deus entrou no mundo, sofreu, morreu e ressuscitou ao terceiro dia precisamente para comunicar a Trindade – em ambos os sentidos do termo comunicar. Isto é, para revelar a vida interior do Deus Trino e para dar vida ao homem.
A mentalidade moderna despreza o dogma religioso. Isto está no coração do liberalismo religioso que Newman tanto combatia. Um dos piores mitos modernos é que o dogma não interessa. O que interessa é que nos amemos uns aos outros, fazermos o bem, servirmos os pobres, etc. Na melhor das hipóteses o dogma é um empecilho, e na pior conduz à intolerância e à perseguição.
Mas a mente humana é feita para dogmas. Se lhes fecharmos a porta, apenas encontrarão outra forma de entrar. A religião do dia critica o dogma religioso, mas admite os seus próprios, que são extraordinariamente pouco tolerantes. Por isso, aquilo em que acreditamos interessa, sim. E quem diz o contrário tende a dizê-lo de forma dogmática. O modernismo começa por convencer os doutores da religião a porem o dogma de lado, apenas para o trazer de volta com ainda mais força.
A razão pela qual devemos crer no dogma da Santíssima Trindade e celebrá-lo é porque é verdade. Não nos foi revelado por qualquer razão utilitária – para edificar a civilização, ou para salvar o Ocidente, nem nada que se pareça. Celebramos este dogma porque Deus é. E Ele deve ser adorado porque é, e como é. Por isso as orações da missa de Domingo passado falam de Deus simplesmente como Ele é, e não sobre qualquer coisa que Ele fez.
Dito isto, viver de acordo com o dogma também traz grandes benefícios, como acontece sempre com a devoção à verdade. Acreditar e viver a verdade do Deus Trino liberta-nos da escravatura deste mundo, relativiza tudo o resto e proclama a nossa independência de qualquer coisa criada. É por isso que a oração é um acto subsersivo. Deus é. Nenhum Estado, nenhuma economia e nenhuma ideologia pode tomar o seu lugar. Muitas são as forças que procuram moldar a nossa vida, de nos guiar de acordo com o poder, o prazer e a possessão. Mas aqueles que adoram o Deus Trino estão fora do alcance dessas forças, pois são moldados pela Santíssima Trindade.
Posto de outra forma, aquilo em que acreditamos molda quem somos. Inevitavelmente, nós tornamo-nos semelhantes àquilo que adoramos (Salmos 115). Por isso, aderir ao Deus único e verdadeiro forma-nos na verdade. Significa ser moldado por um Deus que não é pura vontade (como é Allah) mas que está centrado no Logos, na divina razão, o que por sua vez enaltece a racionalidade humana também. A nossa celebração do dogma forma-nos de acordo com Aquele que é uma comunidade de amor. Um povo unido em torno da adoração da Santíssima Trindade torna-se mais semelhante a Ele.
Esta semana alegramo-nos por termos recebido um dogma. O Deus que deve ser adorado tornou-se conhecido e fomos introduzidos à sua companhia. O facto de Deus ser um liberta-nos da inclinação quase universal do homem para o politeísmo e o panteísmo. O facto de Deus ser três insere-nos na sua comunidade de vida e de amor.
O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero.
(Publicado pela primeira vez no domingo, 26 de Maio de 2024 em The Catholic Thing)
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