Acabo de ler um post muito interessante de um especialista americano em estatística. O Ryan Burge faz posts frequentes no seu blog “Graphs about Religion” em que analisa dados estatísticos relativos a religião, permitindo rebater, ou por vezes comprovar, ideias e preconceitos.
É verdade que a maioria dos seus posts são sobre os Estados Unidos, mas este mais recente é sobre uma realidade global, nomeadamente o grau de participação em movimentos religiosos em diferentes países.
As conclusões são muito interessantes. Usando dados de um inquérito sobre participação em movimentos ou organizações de diferentes naturezas, o estudo conclui que as organizações religiosas dominam em grande parte do mundo. Na América Latina, por exemplo, dominam em todos os países menos no Uruguai, e mesmo na Europa são muito influentes. Atrás, a uma distância significativa, estão organizações recreativas, mas só em dois países dominam organizações artísticas ou musicais. Sindicatos, por exemplo, só são as mais populares num estado.
Para aprofundar os dados, Burge cruza esta informação com estatísticas sobre participação política e encontra uma correlação. Ou seja, claramente existe uma relação positiva entre a participação em organizações religiosas e a participação política e, já agora, o activismo social em geral.
Portugal não é um dos países sondados neste estudo, infelizmente, mas acredito que esteja em linha com estas conclusões.
Contudo, o autor admite que existem alguns dados do estudo que ele não compreende. Ficou muito admirado com o facto de menos de 1% dos egípcios dizerem que fazem parte de uma organização religiosa, o número para a Tunísia também é muito baixo. Foi então ver os dados para grau de importância da religião na vida das pessoas, e constatou que a religião é descrita como muito importante para 98% dos egípcios. “Isto simplesmente não faz sentido”, diz, reconhecendo a sua falta de conhecimento sobre os países em questão.
Pois bem, eu creio que, pelo contrário, estes dados fazem todo o sentido, se tivermos em conta o seguinte.
A principal organização religiosa no Egipto é a Irmandade Muçulmana, um movimento que serviu de inspiração para grupos fundamentalistas um pouco por todo o mundo árabe. Acontece que durante o regime de Mubarak, que durou décadas, a Irmandade Muçulmana foi ilegalizada. Depois da Primavera Árabe foi legalizada novamente, e conseguiu até eleger um Presidente da República, mas um novo golpe militar acabou com essa aventura, e o movimento voltou novamente à clandestinidade.
Não é, por isso, muito surpreendente que os egípcios tenham alguma cautela em admitir, mesmo sob anonimato, que pertencem a um movimento que é oficialmente considerado terrorista.
Mas isto ganha outros contornos quando olhamos para a outra conclusão de Burge, da correlação entre participação em organizações religiosas e activismo político. É que em países autocráticos como o Egipto, fora o pequeno interregno entre a Primavera Árabe e o golpe que introduziu o actual regime, o que o Governo menos quer é uma população politicamente activa, daí que a participação em organizações religiosas seja fortemente dissuadida pelas autoridades, que também não facilitam a vida às próprias organizações que se querem formar e que possam vir, de alguma forma, a servir de base para futuras acções ou contestação política.
Lembrem-se que não estamos a falar de uma coisa de ontem, são já múltiplas gerações que foram criadas sem a cultura de participação cívica e em movimentos religiosos.
Acredito que esta mesma explicação se aplique em traços gerais à Tunísia, que sendo historicamente mais secularizada que o Egipto, também teve nas organizações islâmicas a fonte da oposição política ao regime, reprimidas por isso durante muitos anos.
Há ainda outra conclusão a tirar, que se pode aplicar também a Portugal.
É que ao contrário do que temem aqueles que vêem nos movimentos religiosos todo o tipo de conspirações contra a liberdade, os dados revelam que a participação activa em organizações religiosas contribui para a consciência cívica e para a participação política, o que me parece fundamental para termos uma democracia verdadeiramente representativa e saudável. O que também me leva a crer que a quebra em prática religiosa a que temos assistido na Europa ocidental nas últimas décadas pode ser precisamente uma das maiores ameaças à democracia que tanto estamos a celebrar este ano em particular.