Logo a seguir à Ressurreição de Cristo, São Pedro dirige-se a uma multidão em Jerusalém, falando sobre como Deus “cumpriu o que já antes anunciara pela boca de todos os profetas: que o seu Cristo devia padecer.” (Actos 3,18)
Essas palavras foram proferidas depois de ter curado um coxo “em nome de Jesus Cristo”, às 15h – a hora da Misericórdia de Deus – junto à “Porta Formosa” do Templo. No seu discurso, recorda ainda os ouvintes da sua cumplicidade – talvez enquanto membros da multidão de Sexta-feira Santa no átrio de Pilatos, mas certamente na qualidade de pecadores – em terem “negado” Cristo e de o terem “entregado” à morte. A referência à negação é também uma acusação própria. Mas Pedro prossegue, mitigando a responsabilidade dos seus ouvintes, afirmando que “agiram por ignorância, assim como os vossos chefes”.
Estas palavras representam uma extraordinária conversão, quase mesmo um exorcismo para São Pedro. Estamos a falar do homem a quem Cristo chamou “Satanás”, ordenando: “Vá de retro” (Mateus 16,22) por ter manifestado o desejo de que Jesus não sofresse.
A cura ocorreu quando Pedro e João estavam a caminho da oração da tarde. Esses dois, juntamente com Tiago, receberam ainda mais frequentemente do que o resto dos apóstolos a instrução de que deveriam guardar silêncio sobre os milagres de Jesus “até que o Filho do Homem seja ressuscitado de entre os mortos”. Esse apelo ao silêncio – o “Segredo Messiânico” – surge frequentemente nos evangelhos de Domingo deste ano, porque é um tema comum no Evangelho de Marcos.
O “Segredo Messiânico” de Jesus não é uma questão de humildade excessiva, nem uma táctica de relações públicas. Jesus ordena aos seus apóstolos que guardem segredo porque está consciente de que o sofrimento do Cristo é uma parte intrínseca da sua Missão. Mas essa realidade inevitável chocou de frente com as expectativas judaicas (partilhadas pelos apóstolos) de um Messias triunfante e glorioso que libertaria Israel sem qualquer passagem pelo Calvário.
Como referiu o estudioso bíblico Leopold Sabourin, o Segredo Messiânico era uma medida necessária, embora temporária (“até que o Filho do Homem seja ressuscitado de entre os mortos”). Só quando Jesus ressuscitar é que poderá ser compreendido como Messias à sua medida. Até isso acontecer – até as expectativas judaicas de um Messias impassivelmente triunfante serem convertidas para a realidade de um Messias que morre, e na Cruz (Deuteronómio 21, 22-23) – a Missão de Jesus será sempre impedida por uma falsa esperança, tal como a “pedra de tropeço” do “Que Deus não permita isso!” de São Pedro.
Para Pedro, esta evolução de “Isso não te acontecerá” para “o Seu Cristo deve sofrer” é uma conversão tão radical como aquela que ele está a exigir aos seus ouvintes. É também a conversão que Jesus prega. A sua exegese no caminho para Emaús, bem como a lição que dá sobre o Antigo Testamento durante a Última Ceia, centram-se em como “como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?” (Lucas 24, 25-26).
Pedro teve de se converter a uma nova forma de pensar sobre o sofrimento. Também no nosso tempo isso é uma necessidade.
Pedro é, de certa forma, um homem muito moderno. Nós encaramos o sofrimento como algo a ser evitado. O sofrimento é algo totalmente incompatível com a dignidade do Messias.
Pedro, por outro lado, é um judeu religioso. O sofrimento não é apenas destituído de sentido, como diriam os nossos contemporâneos, mas sim uma consequência, um castigo, pelo pecado. Lembram-se da pergunta que os apóstolos fizeram quando encontraram o homem que nasceu cego? “Rabi, quem é que pecou, este homem ou os seus pais?” E embora essa herança judaica inclua também a tradição do sofredor inocente que era Job, o paradigma teológico daquele tempo ia muito mais no sentido de se traçar uma linha recta entre o pecado e o sofrimento.
A modernidade está a precisar da sua própria conversão – aliás, do seu próprio exorcismo – no que diz respeito ao sofrimento. E de muitas formas deve ser ainda mais rigorosa que a de Pedro, porque ele reconheceu, pelo menos, que o sofrimento, a doença, o pecado e a morte estavam de alguma forma ligadas à desunião interna e o estado decaído do ser humano.
Já o mundo moderno, em contraste, nega as muitas provas da queda da humanidade que saltam à vista, insistindo que os seres humanos, ou pelo menos aqueles que não vêem qualquer necessidade para o Calvário – como os que se dizem do “lado certo da história” ou os da “arca da justiça” – vão conseguir endireitar tudo.
Num mundo assim o sofrimento não tem sentido. Na medida em que a sua fonte é a desunião interna, não passa do jugo pesado da nossa biologia a ofender a nossa “dignidade”, mas nada que a razão humana não consiga resolver. “Uma vida melhor e mais digna através da tecnologia”, como a máquina da morte do pai da eutanásia moderna, o Dr. Kevorkian. Não é apenas razoável, é um direito humano!
A conversão de Pedro vem da sua descoberta – talvez enquanto se esconde por detrás de alguma pedra perto do Calvário – de que todos os projectos de “dignidade” humana que partem da “autonomia humana” acabam por se despistar tragicamente. O remédio não se encontra na “morte com dignidade”, mas naquele que conquistou a morte e todas as suas consequências. Aquele que a conquistou através do sofrimento, não evitando o caminho para o sofrimento, como Pedro aconselhou, mas que dá sentido ao sofrimento e à nossa possibilidade de o oferecer.
Só Ele, escreveu São João Paulo II, ecoando o Vaticano II, “revela verdadeiramente o homem a si mesmo” bem como o sentido da sua vida. O sentido do homem e da sua vida não é apenas uma série de escolhas igualmente válidas a fazer por indivíduos autónomos, muito menos algo que possam “definir” como um acto fundamental da sua liberdade.
Como vemos em Pedro, trata-se de uma escolha entre a visão do homem segundo o Céu ou o Inferno, a visão do Autor da Vida (Actos 3,15) versus a do Malévolo que lida na morte “desde os primórdios” (João 8,44).
O que nos leva de novo à escolha que Javé colocou diante de Israel, e que coloca diante de todos os homens: “ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida” (Deut. 30,19). E, como Jesus disse a Marta, e como Pedro passou a compreender – mais do que um conceito, a Vida é uma pessoa (João 11,25).
John Grondelski (Ph.D., Fordham) foi reitor da Faculdade de Teologia da Seton Hall University, South Orange, New Jersey. As opiniões expressas neste texto são apenas suas.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 5 de Maio de 2024)
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