Um padre, pela própria natureza da sua missão, é chamado a proclamar a verdade e a apontar as injustiças na sociedade. Quando se torna bispo, essa responsabilidade aumenta, e quando se torna cardeal ainda mais.
Ao mesmo tempo, os estados tendem – com algumas excepções – a bajular e a tratar bem os seus bispos, sobretudo os mais mediáticos. É comum vermos as figuras políticas dos estados a congratular publicamente os clérigos quando estes recebem altas nomeações. Acontece em Portugal, não haverá de acontecer no resto do mundo?
Ao longo das últimas semanas surgiu uma interessante polémica na República Democrática do Congo (RDC) envolvendo o Cardeal Fridolin Ambongo Besugo, Arcebispo de Kinshasa.
A RDC é um país absolutamente caótico. E se ser um país caótico já é difícil, ser um país gigante e caótico, ainda mais. As duas mãos não chegam para contar os grupos armados que operam dentro das fronteiras do país, muitos dos quais apoiados e financiados por países vizinhos, outros pelo próprio governo; as infraestruturas praticamente não existem; o país é riquíssimo em termos de matérias primas, que são pilhadas por empresas estrangeiras que enchem os bolsos a poucos enquanto o povo continua na miséria. Enfim, um rosário de tristezas e horrores infelizmente muito comum em muitos países africanos.
Estas tristezas têm sido fortemente denunciadas pelo arcebispo de Kinshasa. E não duvido que este seu perfil, bem como o seu papel na organização da recente visita do Papa Francisco a Kinshasa, tenham contribuído para que ele fosse nomeado cardeal e, mais ainda, que tenha sido incluído no grupo de cardeais consultores do Papa, o G9.
O Cardeal Ambongo tem dado mostras de ser um homem que não teme dizer as verdades, doa a quem doer, mesmo que seja incómodo para o próprio Papa, como se viu depois de ter sido lançado o Fiducia Supplicans, em que o congolês assumiu o papel de porta-voz da Igreja africana na contestação à possibilidade de abençoar pessoas em uniões homossexuais.
Agora parece que as autoridades congolesas ficaram fartas das críticas internas do bispo. Os sinais foram-se acumulando. Há algumas semanas Ambongo viajou para Roma para se encontrar com Francisco e, ao contrário do que é habitual, não lhe foi permitido aceder ao “lounge” de primeira classe no aeroporto de Kinshasa. Podemos achar que um clérigo não se deveria queixar de ser privado de tal luxo, mas a Igreja congolesa viu ali um primeiro indício de pressão governamental e não gostou.
Entretanto o Cardeal foi falando livremente, até dar uma entrevista ao site católico Fides. Na versão impressa dessa entrevista, publicada no dia 18, surgiram várias críticas ao Governo, incluindo a acusação directa de este estar a armar milícias na RDC. Dias depois começaram a circular imagens de uma carta do Procurador Geral a ordenar a um procurador distrital de Kinshasa que abra uma investigação contra o Cardeal por “comportamento sedicioso”.
Segundo a carta, Ambongo será responsável por “constantes comentários sediciosos durante conferências de imprensa, entrevistas e homilias” que têm o potencial de “desencorajar os militares das forças armadas da república que combatem na frente, mas também de incentivar rebeldes e outros invasores a maltratar as populações locais, já de si tão fustigadas por tantos anos de desestabilização”.
Estamos perante uma situação potencialmente explosiva no Congo. Tanto o Governo congolês como o Cardeal têm de ter muito cuidado com os próximos passos. Se Ambongo insistir nas críticas, pode muito bem vir a sofrer pessoalmente por isso. Não seria o primeiro alto clérigo a pagar com a liberdade, ou com a vida, a ousadia de desafiar as autoridades políticas e militares. Mesmo uma medida menos agressiva, como o exílio, seria dramática. O Cardeal tem-se estabelecido como uma das vozes da Igreja africana, o que tem levado muitos a apontá-lo como “papabile”. Essas coisas valem o que valem, mas o papel que ele está a desempenhar, ou a tentar desempenhar, só funciona se ele estiver em África. Se for exilado – seja oficialmente, seja por ameaças que levem o Vaticano a removê-lo para sua segurança – o mais natural é ir para Roma e aí, bem, aí será apenas mais um cardeal em Roma.
Contudo, o Governo também está a correr sérios riscos. A Igreja tem muita influência no Congo e o povo, sobretudo em Kinshasa, tem um sentido de participação cívica que já fez tremer governos no passado. O Cardeal Ambongo já é bastante popular pelo simples facto de ter um líder religioso, ainda por cima com o prestígio de ser Cardeal e próximo do Papa. Se o Governo se virar explicitamente contra ele, o tiro pode bem acabar por sair pela culatra, tornando-o um herói nacional aos olhos de uma população que sabe bem da miséria em que vive e da corrupção que existe entre as elites.
Devemos agora estar atentos aos próximos passos, mas já há pelo menos um sinal de que o Cardeal poderá estar a tentar acalmar um pouco as águas internamente. Dias depois de ter publicado a entrevista, a Fides publicou um esclarecimento em que pede desculpa por ter atribuído a Ambongo palavras e acusações que afinal ele não terá feito. Cito: “Estas imprecisões nas palavras usadas levam-nos a enfatizar que o cardeal não fez a seguinte declaração: ‘o governo distribuiu armas adicionais a vários grupos armados, como os Wazalendo e certos membros das Foras para a Libertação do Ruanda’. Pedimos desculpa ao Cardeal, e a todos os que possam ter ficado perplexos ou amargurados pelo conteúdo e as palavras usadas”.
Este pedido de desculpa é muito estranho. Por mais que a Fides culpe as traduções da entrevista, como se atribui a um cardeal uma frase desta gravidade por engano? Eu diria que, das duas uma, ou as palavras foram ditas, mas a intenção sempre tinha sido que fossem em “off”, ou seja, para compreensão da situação, mas não para publicação, o que até é bastante comum; ou então o Cardeal disse e mais tarde, perante as reacções arrependeu-se e a Fides está a dar o peito às balas em sua defesa.
Por fim, há que sublinhar que se Ambongo se mantiver firme; se continuar a denunciar injustiças e corrupção, mesmo perante a hostilidade governamental; e se continuar a desenvolver este seu papel de líder da Igreja africana, a sua estrela poderá continuar a subir em Roma, não só enquanto potencial “papabile”, sobretudo numa altura em que muitos começam a sentir-se mais à vontade com a ideia de um Papa da África subsaariana, mas também enquanto movimentador dos votos de cardeais africanos, dos países em desenvolvimento em geral e – o que não é de menosprezar – do bloco de cardeais francófonos.