O nome da mais recente declaração sobre Dignidade Humana, do Dicastério para a Doutrina da Fé, “Dignidade Infinita”, pode causar alguma confusão. A palavra “infinito” significa literalmente “sem limites”. Implicitamente, contudo, nós lidamos em quantidades, como tempo, poder ou perfeição. Muitos já notaram que nesses campos apenas Deus, na sua natureza, pode reclamar infinitude. Estará esta declaração a afirmar um novo humanismo, com base na divindade da pessoa?
Mas a Declaração refere claramente que neste contexto o termo significa “não limitado pelas circunstâncias”. Isto é, a dignidade humana não desaparece quando alguém é pobre, fraco, nos últimos estágios de uma doença fatal… ou no útero. O que a Declaração quer sublinhar é precisamente o ponto que o movimento pró-vida sempre quis sublinhar, que a posse de direitos humanos não pode depender de uma localização geográfica, do estar ou não estar in utero, de alguém nos desejar ou não, de alguém nos ter conferido estatuto ou não.
Os direitos humanos dependem da natureza humana e é em virtude dessa natureza que temos dignidade intrínseca e inviolável. Seria uma violação grosseira dos direitos humanos permitir o descarte de crianças indesejadas e já nascidas – ou sequer exigir o direito a fazê-lo – logo, o mesmo se aplica a crianças por nascer.
Ao lidar de forma tão franca com a base dos direitos humanos, a Declaração fornece uma fundação necessária para a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, de 1948. Esta nova Declaração celebra aquela e avalia-a (com João Paulo II) como sendo o cumprimento pela humanidade de um alto nível de claridade sobre os direitos que radicam na dignidade humana.
Porém, como Jacques Maritain deixou muito claro nas suas próprias reflexões sobre a elaboração dessa Declaração Universal dos Direitos do Homem, as bases filosóficas e religiosas desses direitos que augurava foram deixadas propositadamente vagas.
Os redactores da Declaração Universal basearam-se no método pragmático a que John Rawls mais tarde chamaria a “sobreposição de consensos”. Logo após a Segunda Guerra Mundial, entre o choque geral com os horrores do nazismo, parecia bastar simplesmente afirmar direitos, sobre os quais existia acordo, que tinham sido negados pelo militarismo e racismo do movimento nazi.
Para isto foi necessário ignorar certas negações análogas da União Soviética, que foi signatária. E, evidentemente, se os comunistas ateus se estavam a juntar ao manifesto, então a verdadeira base dos direitos humanos, a dignidade transcendente do homem, criado por Deus e redimido por Jesus Cristo, não podia ser afirmada.
Mas como é que estão a correr as coisas com o método da “sobreposição de consensos”? Basta olhar para a litania de violações da dignidade elencadas na segunda parte da Declaração do DDF. O consenso deixou de existir. Como se afirma no documento, agora afirmam-se direitos espúrios, ancorados em ideias falsas de liberdade e autonomia humanas. Estes direitos (“o direito à escolha”) até gozam de protecção legal e são tidos como superiores a direitos humanos genuínos. Até podem reclamar o augusto título de “dignidade” (como na “morte com dignidade”).
Dir-se-ia que neste tipo de contexto o “Dignidade Infinita” afirmaria, como fazem os bispos americanos, que “a ameaça do aborto” é a “prioridade preeminente” para as orientações e opções políticas.
Não será o aborto legal, baseado num suposto “direito à escolha”, a negação mais clara e mais flagrante da verdade que esta Declaração pretende proclamar? Na verdade, a Declaração do DDF faz isto mesmo, de duas formas.
Em primeiro lugar, fá-lo naquilo que diz. Citando João Paulo II, a Declaração observa que: “A aceitação do aborto na mentalidade, no costume e na própria lei é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do senso moral, que se torna sempre mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida.”
E citando o Papa Francisco, afirma: “esta defesa da vida nascente é intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em toda fase de seu desenvolvimento (…) Se esta convicção cai, não restam sólidos e permanentes fundamentos para a defesa dos direitos humanos, que seriam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de ocasião.”
Mas fá-lo ainda, implicitamente, com o destaque que dá ao tema.
É certo que o objectivo da Declaração é de gizar a verdadeira fundação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e de sistematizar a ética de uma fraternidade humana geral, que o Papa Francisco defendeu na encíclica Fratelli Tutti.
Naturalmente, por isso, quando a Declaração aborda as violações da dignidade humana relativas a estas preocupações, começa com o problema da pobreza e das graves disparidades de riqueza entre as nações; a praga da guerra; e a condição desesperada de refugiados e migrantes.
Mas entre as violações da dignidade humana que recaem sobre o poder legislativo directo de um Estado que ordena os seus próprios assuntos com base na lei, a Declaração dá proeminência ao escândalo do aborto legal.
A Declaração tem muitos outros aspectos excelentes, como a rejeição enfática da maternidade de substituição e a sua afirmação de que a diferença entre homens e mulheres é real, inviolável e um dom de Deus na Criação, que contribui para a nossa genuína liberdade, e não apenas algo que é “assinalado” por seres humanos, com vista à nossa subjugação por outros.
Podemos lamentar o facto de a Declaração não ter dado o passo natural de demonstrar a ligação entre a revolução sexual e a confusão que se gerou em torno dos direitos humanos desde 1948. Como é que demonstramos respeito pela dignidade infinita do ser humano se damos tão pouca importância ao facto de se ser gerado no seio de um casamento, ou não? Que bom que teria sido afirmar que, também aqui, a justiça social verdadeira depende daquilo que muitos consideram como sendo apenas uma escolha moral pessoal!
Pode-se discutir mais um ou outro aspecto, mas no geral em vejo neste documento um exemplo da Igreja a ensinar o mundo.
Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na sexta-feira, 12 de Abril de 2024)
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