A Conferência Episcopal portuguesa acaba de aprovar a atribuição de “compensações financeiras” para vítimas de abuso sexual no âmbito da Igreja Católica.
O anúncio foi feito esta tarde, embora os detalhes do programa de compensações ainda não tenham sido divulgados.
A declaração pode ser lida na íntegra aqui, no ponto 4. Vejamos, para já, o que sabemos e o que isto significa.
- Só o facto de haver um acordo, e de ser unânime, é um ponto muito positivo. No início desta reunião dos bispos as perspectivas eram de estarem longe de um consenso. Afinal, aconteceu um milagre em Fátima. Ainda bem!
- Não são indemnizações, são “compensações financeiras”. Estamos claramente no campo da linguagem jurídica aqui. Parece que o termo “indemnização” implica um grau de assunção de culpa, daí optar-se pelo termo “compensação financeira”, com “caráter supletivo”. D. José Ornelas adiantou, em conferência de imprensa, que a escolha do termo não tem só a ver com uma protecção jurídica da Igreja, mas também com uma maior abertura, permitindo assim atribuir montantes a pessoas vítimas de crimes que já tenham prescrito, ou que não sejam passíveis de processo criminal.
- Quem paga? Serão as dioceses, todas a contribuir para um fundo comum. O valor a contribuir por cada diocese, ou o valor total do fundo não foram ainda determinados, até porque ainda não se sabe quantas pessoas vão pedir compensações, nem o valor das mesmas. Segundo D. José Ornelas, o valor a contribuir depende das possibilidades de cada diocese, tendo deixado claro que nenhuma será estigmatizada se não puder contribuir o mesmo que as demais.
- Quem recebe? Já existem alguns pedidos de compensação, mas os bispos pedem que os interessados apresentem os seus pedidos ao Grupo Vita ou à comissão diocesana da sua respectiva diocese. O prazo para o fazer é entre Junho e Dezembro de 2024. Não foi esclarecido, mas o que se subentende aqui é que esta janela fecha a partir de Dezembro de 2024.
- Quanto recebe cada pessoa? Isso não foi explicado. Apenas se sabe que a partir de Dezembro de 2024 será nomeada uma comissão, composta por especialistas civis, para determinar o montante das compensações. Não é claro se haverá uma avaliação caso a caso, atribuindo valores mais altos consoante a gravidade dos abusos, ou se a ideia é dividir o fundo igualmente entre os diferentes pedidos. Nem ficou claro se os casos vão ser avaliados quanto à sua credibilidade, o que é um ponto fundamental de se esclarecer.
- E depois de Dezembro de 2024? Fica por esclarecer o que acontece depois desta data. A ideia é este ser um fundo permanente, que se vai “abastecendo” com contribuições regulares para a eventualidade de surgirem casos posteriores? Ou este é um mecanismo para lidar com casos passados, e a partir de 2025 cada caso terá um tratamento isolado?
- Isto afecta os processos jurídicos? Não. Ou pelo menos parece ser essa a intenção dos bispos. A atribuição de uma compensação não é uma assunção de culpa por parte da diocese, ou da Conferência Episcopal. Em Portugal, pelo que tenho percebido, as indemnizações – agora sim, o termo é mesmo esse – são individuais, pelo que só podem ser aplicadas pelos tribunais aos autores dos crimes, no caso, o próprio do abusador ou eventualmente um seu responsável que de alguma forma contribuiu para a situação, encobrindo o abusador ou ignorando denúncias. Isto significa que uma mesma vítima pode receber uma compensação do fundo criado pela CEP, e mais tarde vir a ser indemnizado pela pessoa que abusou dela, por exemplo.
- Que triagem haverá? Obviamente tem de haver algum tipo de avaliação da credibilidade do caso apresentado pelas alegadas vítimas. O objectivo dos bispos não é, evidentemente, de criar um bar aberto onde toda a gente pode aparecer e levantar um cheque, por mais rebuscada que seja a sua história. Já sabemos que a prescrição civil ou canónica não será um obstáculo, mas alguma coisa é preciso avaliar. Quem fará essa avaliação? De que forma? Há algum espaço para recurso? Estas são questões que também precisam de resposta.
- As vítimas têm uma palavra a dizer? Espera-se que sim, e D. José Ornelas deu a indicar que sim na conferência de imprensa, quando disse que as vítimas já estão a ter um papel no diálogo com as instituições criadas pela Igreja. É muito importante que o valor das compensações seja minimamente alinhado com as pretensões realísticas das vítimas, evitando assim que um gesto que pretende ser de boa-vontade dos bispos se transforme numa polémica, por ser considerado muito aquém daquilo que as vítimas acham justo.
- E as ordens religiosas? As ordens religiosas não parecem estar contempladas neste mecanismo. Em conferência de imprensa, D. José disse apenas que os Institutos de Vida Consagrada acompanharam os trabalhos, mas que cada uma tem as suas “normas próprias”. Na prática, prevejo que isto vai resultar em vítimas de primeira e vítimas de segunda, uma vítima de um padre diocesano vai ter direito a uma compensação financeira, mas uma vítima de um membro de uma ordem religiosa, provavelmente não. É certo que algumas ordens religiosas – ocorrem-me os jesuítas – têm tido um papel muito proactivo em toda esta discussão, e provavelmente terão interesse em juntar-se ao fundo diocesano, ou pelo menos acompanhar os valores apresentados, mas com outros institutos antevejo um trabalho muito mais difícil. Não será preciso relembrar que para as vítimas e para a sociedade isto reflecte mal sobre a Igreja como um todo, pois as nuances das diferenças canónicas entre o padre diocesano X e o consagrado Y, são-lhes indiferentes.
Ao longo das próximas semanas/meses saberemos certamente mais detalhes. Espera-se que já esteja tudo esclarecido a tempo da abertura da janela de pedidos, em Junho.
Tenho a noção de que não consigo avaliar tudo o que está em causa, mas pessoalmente sempre achei que não há (nem deve haver) nenhuma forma de compensar ou indemnizar uma pessoa por um crime desta natureza. Apoiar de todas as formas para a recuperação psicológica pagando a terapia necessária, dar todo o apoio espiritual… sem dúvida! Tudo o que não envolva dinheiro, porque há coisas, como o sofrimento e a inocência, que não têm preço, e quando se lhes põe um valor, são tristemente desvalorizadas