Já repararam que os extremos mais intolerantes dos espectros político e cultural estão sempre obcecados com a criminalidade, ainda que imaginária?
Nos últimos anos temos sido brindados com a narrativa da nova direita populista de que Portugal é um antro de crimes violentos; de que existem hordas de muçulmanos fanáticos no Martim Moniz a planear degolar as nossas mulheres e os nossos filhos; de que as minorias étnicas, incluindo os ciganos com quem tão pacificamente convivo no meu bairro há 20 anos, são uma constante ameaça ao nosso bem-estar, e muito mais, pontuado por minutos de silêncio pelas supostamente incontáveis vítimas mortais da corrupção.
A esquerda política e os progressistas culturais revoltam-se contra esta linguagem, que catalogam de alarmista. E têm razão.
Mas qual não é o meu espanto ao descobrir que o outro lado da barricada também vê crime em toda a parte? (Nenhum… Na verdade o meu espanto não é nenhum, mas continuemos).
Nas últimas 12 horas vi dois exemplos claros disto mesmo.
Ontem no Twitter um utilizador chamado João dizia que:
É saudável que os conservadores tenham direito à sua opinião, mas há várias discussões que estão encerradas na sociedade portuguesa: aborto, casamento e adopção LBGT, por exemplo. As alterações legislativas correram bem, trouxeram progresso e paz social. Siga.
Até aqui tudo bem. É a opinião do João, e é respeitadora da opinião de quem discorda, como é o meu caso.
Mas reparem na resposta que o João obteve, de um outro utilizador, que se identifica como “Jay Who Tweets” e que parece ser daqueles que está ansioso por ir agitar a bandeira da causa LGBT em Gaza.
“Discurso de ódio não é opinião, é crime. Querer retirar a liberdade a vários grupos é discriminação, violência e ameaça.”
Perante a resposta do João de “Sim, é isso. Faz queixa crime de toda gente que é contra o aborto, por exemplo, e depois conta-nos como correu.”, o Jay Who Tweets enfureceu-se:
“Não são pessoas random no conforto de sua casa. Estamos a falar de pessoas com peso a nível político que estão a ameaçar publicamente a liberdade e direitos de vários grupos de pessoas. Ganha tu noção, que esta mrda do niilismo já deu o que tinha a dar.”
Imaginem só! Pessoas com peso político que se atrevem a discordar da ideia de que o casamento possa ser reinterpretado por políticos, ou que a família possa ser reinventada desafiando a biologia, ou até que as mudanças legislativas não afectam o estatuto dos nascituros como seres humanos. Que solução poderá haver para estas divergências de opinião no Século XXI que não a ameaça com tribunal e eventual prisão ou, melhor ainda, reeducação obrigatória?
O segundo exemplo chegou hoje, quando me enviaram um link para um artigo na Dezanove – um site que se descreve como: “Ponto de encontro e partilha para a comunidade LGBTIQA+ em Portugal. Queremos fazê-lo de forma descontraída” – que denuncia o escândalo de um senhor italiano chamado Luca di Tolve ter sido convidado para falar num encontro para jovens em Fátima.
Luca di Tolve era homossexual assumido, assumido ao ponto de ter sido eleito “Mister Gay” em Itália nos anos 90. O próprio diz que depois de ter visto muitos amigos a morrer de SIDA entrou numa grande depressão, durante a qual teve uma experiência religiosa muito forte, que atribui à Virgem Maria. Descreve-se agora como heterossexual, casado e pai de família, e diz que quer ajudar os jovens a encontrar a sua verdadeira identidade.
O Dezanove termina o artigo com este parágrafo:
Recorde-se que em 2023 foi aprovada em Portugal a lei que criminaliza a promoção e acções de terapias de conversão. A comprovar-se as intenções anunciadas pela organização deste congresso, no limite, acções exercidas decorrentes de tal programa junto de jovens, configuram um crime passível com multa e passível pena de prisão até três anos.
Se isto é o Dezonove em modo “descontraído”, detestaria vê-los zangados!
Deixem-me ver se percebo bem isto. Um homem dar testemunho de que era homossexual e deixou de ser, aparentemente por intervenção da Virgem Maria, é um crime passível de multa e/ou pena de prisão até três anos, segundo estes especialistas?
E o contrário, também será? Se um homem fala a jovens e explica que foi casado durante vários anos com uma mulher, mas um dia começou a sentir atracção por outros homens e decidiu assumir que era homossexual, ou bissexual, isso também é crime? E tendo em conta que no seu cartaz a organização não está a promover ou a endossar qualquer “terapia de conversão” e que o próprio Luca di Tolve não parece ter passado pelas mãos de qualquer terapeuta que intermediasse a sua mudança, quem é que a Dezanove pretende processar exactamente? A Virgem Maria?
Citando o João, acima mencionado: “Força nisso, depois conta-nos como é que correu”.