Na segunda-feira da próxima semana vai ser lançado uma nova declaração do Dicastério da Doutrina da Fé (DDF), chamado Dignitas infinita, que terá como tema a questão da dignidade humana, e que tratará, entre outros assuntos, da transsexualidade, e dos transsexuais e a Igreja.
Parece-me por isso ser uma boa altura para fazer um apanhado daquilo que a Igreja já disse sobre este assunto, e daquilo que poderá eventualmente estar no documento.
Para começar, o Catecismo da Igreja Católica, publicado nos anos 90, nada diz especificamente sobre transsexualidade ou transgénero, o que só por si é interessante, uma vez que revela como toda esta questão é muito recente e avançou a um ritmo galopante nas últimas décadas.
Mas embora não haja qualquer referência explícita a estas questões, há dois parágrafos que merecem atenção:
2332. A sexualidade afecta todos os aspectos da pessoa humana, na unidade do seu corpo e da sua alma. Diz respeito particularmente à afectividade, à capacidade de amar e de procriar, e, de um modo mais geral, à aptidão para criar laços de comunhão com outrem.
2333. Compete a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar a sua identidade sexual. A diferença e a complementaridade físicas, morais e espirituais orientam-se para os bens do matrimónio e para o progresso da vida familiar. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como são vividos, entre os sexos, a complementaridade, a necessidade mútua e o apoio recíproco.
Cada um destes parágrafos contém uma ideia crucial: No 2323 a ideia de que a sexualidade afecta “todos os aspectos da pessoa humana, na unidade do seu corpo e da sua alma”. Isto é uma doutrina fundamental do Cristianismo, e desde o início do mesmo que se combatem e condenam as heresias gnósticas que procuram separar corpo e alma. Ora, a ideologia de género assenta precisamente na ideia de que é possível o corpo físico ser uma coisa, e o espírito, ou a alma, da pessoa, ser outra. E mais – e talvez até mais grave – que quando existe esta discrepância, o corpo deve ser submetido e moldado, através de alterações físicas que são, no fundo, mutilações, à identidade interior, à alma. Assim, a identidade humana deixa de ser entendida como uma unidade, e passa a existir uma relação desigual, um desequilíbrio pouco saudável, como é pouco saudável o estilo de vida que cultiva a superioridade do corpo relegando o espírito para um papel secundário.
Já no parágrafo 2333 temos uma frase que, lida hoje, se presta a más interpretações: “Compete a cada um, homem e mulher, reconhecer e aceitar a sua identidade sexual”. É muito importante esclarecer que isto significa exactamente o oposto do que poderá parecer se lido pela lente da afirmação da ideologia do género. Aqui trata-se de o homem se reconhecer e se aceitar como homem, e da mulher se reconhecer e se aceitar como mulher, e de ambos se entenderem na complementaridade da sua diferença, reconhecendo que homens e mulheres precisam um do outro, não só para a sua realização pessoal, mas para o bem da humanidade.
Colonização ideológica
Passando à frente, ao longo dos últimos anos temos visto várias declarações do Papa, ou da Santa Sé, sobre a questão da ideologia do género, em geral. Em muitas ocasiões Francisco se referiu a esta ideologia como uma forma de “colonização ideológica”, o que é particularmente grave vindo de um Papa do hemisfério sul, onde a palavra “colonização” tem um peso muito maior do que tem entre nós, no hemisfério norte, e no mundo ocidental.
Só este ano, Francisco criticou directamente a ideologia do género duas vezes, uma no seu discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé – sempre um dos pontos altos do ano para o Papa – e mais recentemente numa audiência com participantes num congresso no início de Março.
Não pode haver dúvidas de que o Papa vê esta questão da ideologia do género – de que a transsexualidade/transgénero é apenas uma parte – como uma das grandes questões do nosso tempo.
Documento não publicado
Um indício interessante sobre o que este novo documento poderá conter é um documento rascunho do Dicastério para a Doutrina da Fé de 2018 que nunca chegou a ser publicado. Nesse rascunho, segundo o The Pillar, encontravam-se alguns parágrafos muito interessantes, que passo a transcrever, com tradução minha.
“O sexo de uma pessoa é uma realidade complexa, cuja identidade é composta de elementos físicos, psicológicos e sociais. Alguns, partindo de uma visão errada da pessoa, procuram separar e até contrastar os diferentes elementos que compõem o sexo, criando uma dicotomia entre os aspectos corporais e psicossexuais da pessoa.”
(…)
“É difícil para um pastor admitir alguém para o casamento quando, na visão de pessoas prudentes e sábias, o transsexualismo do sujeito é suficientemente aparente nas suas acções externas. Tendo em conta que o transsexualismo pode ter diferentes níveis de intensidade, é necessário avaliar cada situação de forma cuidadosa, para não negar injustamente o direito natural ao casamento.”
(…)
“Quem se submete a procedimentos cirúrgicos de mudança de sexo não pode validamente contrair matrimónio. Isto aplica-se tanto a casos de mudança de feminino para masculino, como de masculino para feminino, porque as intervenções cirúrgicas não alteram a identidade sexual da pessoa.”
O documento explicava ainda que um homem que se identifica psicologicamente como uma mulher não deve ser admitido ao sacramento da ordem, e que uma mulher que se identifica como homem não pode receber validamente o mesmo sacramento.
É importante sublinhar que este documento não foi publicado, pelo que não é oficial, e também que o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé mudou entretanto, sendo agora o cardeal Victor Fernández. Contudo, tendo em conta que Fernández já assegurou os fiéis de que esta nova declaração não deve ser polémica para os católicos, não parece natural que esta nova versão se desvie daquilo que tem sido visto como a posição da Igreja nos últimos anos.
Transsexuais e baptismo
Embora o texto acima referido nunca tenha sido publicado, a DDF já se pronunciou directamente sobre a questão dos transsexuais e dos sacramentos, numa resposta a perguntas postas por um bispo brasileiro.
O bispo perguntava, por exemplo, se uma pessoa transsexual pode ser baptizada; se pode ser padrinho ou madrinha; se duas pessoas numa união homossexual podem ser consideradas pais de uma criança adoptada; etc.
As respostas às questões não são especialmente surpreendentes, mas são interessantes mais pelo que não dizem do que pelo que dizem.
Por exemplo, o DDF diz que os transsexuais podem ser padrinhos de baptismo, “mesmo que tenha sido submetido a tratamento hormonal e à intervenção cirúrgica de
reatribuição de sexo. Porém, como tal função não constitui um direito, a prudência pastoral exige que isso não seja permitido quando se verificasse um perigo de escândalo, de indevidas legitimações ou de uma desorientação da comunidade eclesial em âmbito educativo.”
O que fica por esclarecer aqui é se a pessoa fica registada como padrinho ou como madrinha de acordo com o seu sexo biológico, ou com a identidade assumida. Explicando melhor, se uma pessoa que nasceu homem e é por isso biologicamente homem, mas decidiu assumir uma identidade feminina, se apresenta para apadrinhar uma criança no baptismo, fica registada como padrinho, respeitando a realidade da sua situação biológica, ou como madrinha, respeitando a sua preferência pessoal?
Pessoalmente, eu diria que a Igreja tem a obrigação de fidelidade à verdade e aos seus próprios ensinamentos, de não alinhar numa fantasia que é pessoal e socialmente destrutiva, devendo por isso registar como padrinho. Mas por outro lado, pergunto se vale a pena, numa situação destas, abrir uma guerra e sujeitar a pessoa a essa dificuldade acrescida, só para marcar uma posição num conflito que vai muito para além daquela situação pessoal, correndo o risco de perder uma oportunidade de aproximação dessa pessoa à vida da Igreja, levando-a a um afastamento maior do que porventura já sentia. Mas sabemos também que, da maneira que estas discussões são travadas, se a Igreja acedesse a esse pedido por uma questão de misericórdia e para evitar ferir alguém vulnerável, no dia seguinte seria atacada por ambos os lados por dizer uma coisa mas na prática fazer outra. Não é um campo fácil, e não invejo os padres e leigos que tenham de lidar com as situações concretas que se colocam.
E isto conduz-nos directamente a uma das questões importantes a considerar, que é até que ponto a Igreja pode ou deve alinhar na própria linguagem e antropologia da ideologia do género quando dialoga com ela, ou quando a confronta. Por exemplo, quando a Igreja fala de pessoas transsexuais, mesmo que seja para combater a ideologia do género, não está já dar pontos ao adversário ao admitir que tal conceito está ancorado na realidade? A verdade é que não existem pessoas transsexuais ou transgénero, porque nenhuma decisão pessoal ou intervenção cirúrgica pode mudar o sexo com que a pessoa nasceu. Deve a Igreja antes falar de pessoas com disforia de género, um termo medicamente reconhecido como um distúrbio que afecta aqueles que se identificam com um sexo que não aquele com que nasceram?
Mais uma vez, esta não é uma questão fácil, sobretudo para uma Igreja que procura manter-se fiel à verdade, mas ao mesmo tempo deve saber distinguir entre os combates sociais e as pessoas individuais, nunca sacrificando um pelo outro. A função da Igreja é salvar almas, e as almas salvam-se atraindo-as a Cristo. Se Cristo é a verdade, a Igreja nunca pode alinhar na mentira para evangelizar, mas também não deve assumir uma postura que ofende desnecessariamente o outro, ou o trata por inimigo, apenas para poder insistir num ponto particular de doutrina. A chave, como vimos com o próprio Cristo, é dizer a verdade, ainda que seja dura de ouvir, de uma forma que sublinhe em primeiro lugar o amor que temos pela pessoa com quem dialogamos e que deixe bem claro a sua dignidade infinita aos olhos de Deus. Neste campo em particular o Papa tem sido exemplar, nunca abdicando de ser duro na linguagem, mas manifestando, com gestos concretos, a sua proximidade pessoal e estima por pessoas que se encontram em situações complexas. Sendo “dignidade infinita” o título deste documento, é de esperar que ele consiga fazer isso mesmo e, também, que as pessoas de ambos os lados da discussão – e não uso o termo ‘barricada’ de propósito, porque rejeito a imagem da Igreja entrincheirada – saibam ler o documento com a caridade necessária para evitar entender tudo da forma mais negativa possível.
No dia 5/4 corrigi o texto, trocando o termo “psicose” por “distúrbio”, no penúltimo parágrafo.