Uma das frases mais estranhas dos Evangelhos é proferida pelo centurião aos pés da Cruz. No Evangelho de Marcos lemos que quando ele viu que Jesus tinha dado o seu último suspiro, disse: “Verdadeiramente, este homem era filho de Deus” (15,39).
Esta seria a última coisa que alguém diria depois de ver um homem morrer. Toda a gente sabe que a única coisa que os deuses não fazem é morrer. Logo, teria feito mais sentido se, no momento em que viu Jesus morrer, o centurião tivesse dito: “Bom, claramente, este tipo não era um Deus”.
Se Jesus se tivesse elevado 30 metros no ar e lançado raios laser dos olhos, então talvez imaginássemos o centurião a dizer: “Oh não, afinal este era mesmo o filho de Deus”. Depois, o mais provável era que fugisse para se proteger, calculando que o homem, agora que se tinha revelado, talvez não estivesse particularmente contente com aqueles que o tinham tratado tão mal, tendo em conta toda aquela cena do cuspir, gozar, flagelar, coroar com espinhos e pregar à cruz.
Mas Cristo não se elevou no ar, e não lançou raios dos olhos. Isso são coisas de banda desenhada. Não, Ele morreu, algo que os “deuses” não devem fazer. E porém, foi precisamente nesse momento que o centurião disse: “Verdadeiramente, este homem era filho de Deus”.
Somos forçados a concluir que Marcos incluiu esta história peculiar nos Evangelhos porque… bem, em primeiro lugar porque aconteceu. Seria estranho incluir se não tivesse acontecido, uma vez que a maior parte dos leitores também tenderia a considerar, como eu, que fazia pouco sentido que um comum soldado romano concluísse que um homem era “filho de Deus” com base no facto de ter morrido.
Mas Marcos também terá incluído a história porque representava algo de importante sobre a fé na Igreja primitiva. Os apóstolos não estavam a proclamar a divindade de Deus, apesar da sua morte na Cruz, mas sim por causa dela. Eles não estavam a esconder o facto de Cristo ter morrido; antes, estavam a proclamar que, contrariamente ao que alguém poderia ter imaginado, a morte na Cruz foi a revelação decisiva da sua divindade e do seu papel enquanto nosso divino Redentor.
Isto é tão estranho que nos devia levar mesmo a pensar. Um Deus que morre? Que tipo de Deus é esse? Das duas uma, ou é um Deus sem qualquer poder, ou então é um Deus mesmo muito dedicado a nós. Mas se é assim tão dedicado, e se pode submeter-se à morte – não evitar a morte, nem fingir morrer, mas morrer mesmo – e ainda assim vencê-la, então Ele veio alterar fundamentalmente todo o nosso conceito do que significa ser “poderoso”. Um poder tão grande que transcende até a morte, mas que se submete a ela? Um Deus que se revela servo? Não somos nós que lhe fazemos sacrifícios, mas é Ele que se sacrifica por nós? Rebenta com todas as nossas categorias.
Mas, a ser verdade, então altera fundamentalmente a nossa compreensão do cosmos e da vida humana. Galáxias e galáxias a estenderem-se pelos abismos; átomos e quarks e neutrinos e forças quânticas tão complexas que fritam o cérebro – mas tudo isso feito como um acto de amor gratuito por um Deus que nos ama de tal forma que está disposto a assumir a nossa morte para nos dar vida? Isso pode sequer ser verdade?
E se for, como é que Deus nos conseguiria comunicar essa verdade? Relâmpagos? Sismos? A beleza de um nascer do sol? Temos tudo isso, mas para muitos não passam de experiências, cujo sentido nos escapa. Mas a morte, ora aí está algo cujo sentido é difícil de passar despercebido. Ou talvez seja mais correcto dizer que a sua presença eminente ameaça todo o sentido que pensávamos ter.
Consideremos a situação de Kate Middleton, Princesa de Gales. Aqueles de nós que já tivemos um diagnóstico de cancro, como ela teve agora, sabemos que isso muda tudo. O futuro torna-se incerto. Os planos feitos para daqui a uma semana, daqui a um mês, daqui a um ano, tornam-se irrelevantes. Sendo mãe, está certamente preocupada com os seus filhos. Estas suas dificuldades não são mais importantes que as de outros, apenas mais públicas. Mas as questões são as mesmas. O futuro tem algum sentido para mim? É terrivelmente doloroso, uma verdadeira cruz.
Diante da escuridão da morte, as questões fundamentais da vida colocam-se com uma urgência implacável. O que poderia ultrapassar uma incerteza tão grande, e uma escuridão aparentemente tão completa? Alguma coisa poderia restaurar a luz e a paz, e colocar a nossa vida numa base mais segura, menos precária?
Não podemos curar o universo, mas talvez o seu Criador consiga. Mas se Ele a fosse curar, como faria? Raios laser? Espectáculos de luz? Isso não passa de truques de magia patetas. Ou seria necessário partilhar um amor tão grande que pudesse iluminar a escuridão?
Se estivéssemos num episódio do Charlie Brown sobre a Páscoa, o Charlie Brown poderia clamar: “Mas alguém sabe qual é o sentido da Páscoa?” e o Linus daria um passo em frente e responderia: “Sim, Charlie Brown, eu sei qual é o sentido da Páscoa”.
Deus amou de tal forma o mundo que lhe deu o seu único filho. Porque não existe amor maior que este, que um homem dê a vida pelos seus amigos. E a “boa nova” é que não há poder na terra, nem sobre a terra, nem debaixo dela, que nos possa separar desse amor, e daqueles que amamos. E se isso é verdade, então o universo não está vazio e desprovido de sentido, e a vida humana não está vazia e sem sentido, mesmo quando confrontada com o sofrimento e a morte.
Se alguém o amasse de tal forma que estaria disposto a sacrificar livremente a sua vida por si, isso mudaria a sua forma de viver? Essa revelação de que é amado assim tanto faria com que pensasse de forma diferente sobre o sentido da sua vida? Tanto amor e devoção… para mim? É quase demais para acreditar. Mas para quê lutar contra a Primavera? Se foi esse o universo que Deus fez, e se Ele quis partilhar o seu amor connosco de tal forma, porquê dizer que não?
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 2 de Abril de 2024)
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