A Quaresma está a começar de novo, e com ela o desejo de seguir Cristo no caminho para o Calvário. Sinto-me sempre fascinada – tal como toda a civilização ocidental ao longo dos últimos dois milénios – pela Cruz que se encontra no topo dessa subida. É o ponto de concentração de todas as coisas que nos aterrorizam. E talvez o maior mistério de sempre seja o facto de Deus se ter deixado pendurar nela.
Ao longo dos anos tenho contemplado por turnos o seu tormento físico, a solidão da sua desolação e a forma como viu a sua mãe a vê-lo morrer. Mas esta Quaresma abriu-se-me toda uma nova via de oração nas meditações de São John Henry Newman sobre o sofrimento moral de Cristo. Através de uma torrente vitoriana de palavras, Newman ajudou-me a ganhar consciência, pela primeira vez, de algo que considero absolutamente chocante: A realidade de Deus assumir o pecado, o inimigo mortal da sua própria natureza.
Desde que me lembro que sigo o ritual de pedir misericórdia ao “cordeiro de Deus que retira o pecado do mundo”. Sempre que o faço, imagino um montinho bem aprumado de pecados, como paus secos, atados às costas de um cordeirinho que se encaminha, a balir, para o deserto. O cordeiro é branco como a neve, puro e limpo como só um cordeiro pode ser. O peso do monte de pecados pode fazer vergar as costas, mas não o suja, deixa-o imaculado. É uma imagem bonita, embora infantil.
A homilia de Newman, Os sofrimentos morais de Nosso Senhor durante a Paixão”, de 1852, apresenta uma perspectiva terrível para quem ama Jesus: que o seu sofrimento físico foi como nada quando comparado com a dor intolerável na sua alma. E que essa agonia resulta não do peso do pecado, mas do facto de este ser uma invasão, aceite voluntariamente. Ele não se limita a carregar o pecado para longe, Ele abre a sua natureza mortal ao ataque do maligno e deixa que os actos nefastos se infiltrem nele, permeando-o.
A prosa incomparável de Newman capta esta faceta da paixão de Cristo:
Nessa hora tão terrível, portanto, o Salvador do mundo pôs-se de joelhos (…) descobriu o peito para se expor, na sua inocência, ao assalto do inimigo — um inimigo cujo hálito era uma peste e cujo abraço, uma agonia. Lá estava de joelhos, imóvel e silencioso, enquanto o impuro demónio envolvia-lhe o espírito numa veste banhada no que o crime humano tem de mais hediondo e mais atroz; enquanto o demónio invadia a sua consciência, penetrava-lhe em todos os sentidos, em todos os poros do seu espírito, estendendo sobre ele a sua lepra moral – até que se sentisse quase transformado naquilo que Ele não poderia ser jamais, naquilo em que o seu inimigo teria querido transformá-lo.
Newman prossegue, descrevendo a “Pureza Eterna” a sentir-se “um impuro e detestável pecador”, ferroado por cada gota desse “amontoado de corrupções que lhe choviam sobre a cabeça”, da experiência de Jesus a olhar para as suas mãos e vê-las encharcadas do sangue dos milhões de inocentes da história, olhando através de olhos profanados por “visões malignas e as fascinações dos ídolos”, seus lábios “profanados por perjúrios, e blasfêmias”.
Cada vil pecado cometido antes desse dia, e desde então, se concentrou nele, está nele e dentro dele, afastando com o seu fedor a “paz inefável que não cessou de habitar-lhe a alma desde a sua concepção”.
Não admira que naquele momento de agonia no horto, antes de ter sido atingido pela primeira chicotada romana, já o sangue tivesse irrompido pelas suas veias ardentes e pelos poros da pele, cobrindo todo o seu corpo e encharcando o seu manto.
Por mais difícil que seja de contemplar, ou de aguentar durante muito tempo, devemos olhar para esta imagem da imensidão da misericórdia de Deus! Nós pecamos, mas quase nem damos por isso. Estamos confortáveis com o nosso estado pecaminoso, desde que fomos formados que ele faz parte de nós. Mas O Puro contorceu-se debaixo de uma agonia estranha, como se fosse Ele o criminoso.
Mas Jesus vai mais longe: como observa Newman, o seu sofrimento “toma a forma da culpabilidade e da compunção. Faz penitência; confessa-se. Faz contrição (…) Porque Ele é para nós todos a única vítima, o único holocausto expiatório, o verdadeiro penitente, tudo menos o verdadeiro pecador.”
Newman recorda-nos que Jesus não se deixou morrer antes de ter esvaziado o cálice – até que tivesse expiado tudo – pelos meus pecados, pelos teus, e pelos de cada filho de Eva cujos actos cobriram a nossa raça de vergonha.
É preciso verdadeira coragem quaresmal para contemplar essa maior tristeza – a morte de Deus. A minha coragem frequentemente me falha perante visões muito menos dolorosas. Mas Cristo não morreu, diz-nos São Henry Newman, “de exaustão corporal, ou de dor corporal”. Não. Tendo bebido a última gota, desejou que o seu coração atormentado se partisse, e só aí é que encomendou o seu espírito ao Pai.
Eis uma dura verdade para contemplar ao longo destes quarenta dias.
Grazie Christie, M.D. é investigadora sénior no The Catholic Association, e moderadora do programa de rádio “Conversations With Consequences”, da EWTN. Vive com o seu marido e cinco filhos em Miami, na Flórida, onde exerce radiologia.
(Publicado em The Catholic Thing na sexta-feira, 16 de Fevereiro de 2024)
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