
Faz hoje um ano que foi publicado o relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja em Portugal. Não estamos no final de um percurso, mas a caminho. Contudo, há já algumas conclusões que se podem tirar.
Em primeiro lugar, os números. Não me vou alongar, porque tenho os dados todos resumidos neste artigo, que é actualizado cada vez que há uma alteração.
As duas listas de alegados abusadores que foram entregues aos bispos e às ordens religiosas contabilizaram um total de 114 pessoas. Na maioria padres, mas não só. Destes, 45 já tinham morrido e outros nove nunca foram identificados. Juntos, estes dois números correspondem a 47% do total. Se somarmos os que já tinham sido condenados ou estavam reformados por idade ou por doença, ultrapassa facilmente os 50%.
Este é um dado importantíssimo, porque por uma variedade de razões a ideia que passou para fora foi de que existiam cerca de 100 padres pedófilos em actividade na Igreja. A realidade era bem diferente.
Faz sentido estar a esquartejar assim os números? Claro que não é o essencial. Daí, precisamente, a minha crítica ser pelo facto de se ter deixado que a narrativa se centrasse tanto nos números. Era expectável que a imprensa quisesse focar números redondos, e foi um erro ir ao encontro dessa vontade.
Suspensões e condenações
No total, 15 padres foram provisoriamente afastados do ministério enquanto os seus processos decorriam. Nove deles já foram reintegrados, seis continuam à espera da resolução dos seus casos.
Pode-se olhar para estes números e concluir que dos 15 padres que foram provisoriamente afastados, nenhum foi condenado, mas isso é demasiado simplista. Em primeiro lugar, não é por acaso que seis estão ainda à espera, são precisamente os casos mais complexos e, pelo menos na maioria dos casos, estão a demorar mais tempo porque estão a decorrer também processos na justiça civil. Isto significa que se tratam de acusações não prescritas e, presume-se, que existe mais matéria de facto, pois se assim não fosse o mais provável era já terem sido arquivados no civil. Nestes casos é normal que o processo canónico fique em suspenso até que haja uma decisão do processo civil, o que faz todo o sentido. Entre estes seis casos inclui-se o de Viseu, em que um padre é acusado de ter enviado mensagens a um rapaz de 14 anos a solicitar actos sexuais, e outro de Braga, de um padre suspeito de ilícitos de natureza sexual, a quem ainda foi apreendida uma arma ilegal em casa.
Importa ainda referir que havia vários casos que já tinham sido tratados canónica e até civilmente quando saíram as listas, e que entre esses casos também existem condenações: Um em Braga que foi condenado a medidas disciplinares, entretanto já cumpridas; 1 de Bragança, condenado a medidas disciplinares que entretanto já foram cumpridas; 1 de Setúbal que foi condenado a uma sanção, mas que está já fora de actividade por ser muito idoso, e 2 de Vila Real, um dos quais foi condenado a medidas disciplinares entretanto cumpridas e outro que foi mesmo afastado do ministério.
No total, o número de suspeitos condenados canonicamente corresponde a 4% dos 114, e mesmo que todos os seis que ainda estão pendentes sejam condenados, o valor nunca ultrapassará os 10%. Já o número de ilibados/arquivados corresponde a 24% e também ainda poderá aumentar.
Mais uma vez, é um erro focarmo-nos só nos números. Uma taxa de condenação de 6% pode parecer pouco, mas não é o essencial e aqui também as expectativas deviam ter sido controladas. Eu avisei para isso ainda antes de saírem as listas, nas diferentes intervenções que tive na televisão. Era perfeitamente previsível que entre as muitas acusações existissem casos difíceis ou impossíveis de provar, mas a situação tornou-se ainda mais complexa com a descoordenação que existiu entre a CEP e a Comissão Independente que, com a insistência – compreensível – de não pôr em causa a identidade dos denunciantes, acabou por deixar as dioceses com pouca ou nenhuma matéria de facto, e sobretudo sem acesso às alegadas vítimas, para poder substanciar processos. Os arquivamentos eram, nestes casos, quase inevitáveis. E convém aqui recordar que a decisão de arquivar ou não arquivar um processo destes não pertence à diocese, mas sim a Roma, para quem o processo é enviado mal esteja concluída a investigação local.
Valeu a pena?
Mas então, se não há praticamente condenações, menos ainda padres afastados definitivamente do ministério, para que serviu tudo isto? Serviu para muito. Serviu, em primeiro lugar, para pôr fim à narrativa de que este era um problema que não tocava Portugal; serviu para abrir os olhos de muita gente para os horrores e diversos níveis de danos provocados nas vítimas que este tipo de abuso naturalmente acarreta; e serviu para iniciar o tal caminho que a Igreja ainda está a percorrer.
Passado um ano temos já Comissões Diocesanas a funcionar em todas as dioceses – algumas eram, até há pouco tempo, meros enfeites – e temos o Grupo Vita que tem revelado ser muito importante, pois veio preencher um vazio de confiança que existia entre as vítimas e as estruturas eclesiásticas, que as Comissões Diocesanas não preenchiam por serem vistas como demasiado próximas dos bispos. Até podia ser uma percepção errada e injusta, mas existia, e isso é o que interessa.
Isto é curioso, sobretudo porque o Grupo Vita foi formado com o objectivo de ser um organismo temporário, vocacionado para capacitar as Comissões Diocesanas e eventualmente extinguir-se. Mesmo eu, aquando da apresentação do grupo, comentei que ainda bem que isso era assim, porque não precisávamos, neste caso, da atitude tão tipicamente portuguesa de criar mil e uma comissões e grupos para estudar e tentar resolver o mesmo problema. Mas penso que hoje em dia vale a pena pensar se essa será a melhor opção, e se não faria antes sentido deixar o Grupo Vita em funcionamento, formalizando a sua ligação às Comissões Diocesanas, que serviriam assim de braço local do mesmo. Isto pode ser particularmente importante no que diz respeito à questão das indemnizações.
Indemnizações
Dentro de uma semana o Grupo Vita vai apresentar publicamente a sua proposta de um esquema de indemnizações. Não é uma tarefa fácil. Creio que o objectivo será criar um mecanismo que permita à Igreja atribuir indemnizações fixas – podendo ser mais altas em casos de particular gravidade – a vítimas, sem a necessidade de uma obrigação judicial. Isto permitirá encurtar o tempo de espera das vítimas, sobretudo tendo em conta o tempo médio da justiça em Portugal, e servirá para comprovar a boa vontade da Igreja em tratar do problema e colocar mesmo as vítimas no centro.
Mas isto só fará sentido se for uma abordagem uniforme para todas as dioceses e ordens religiosas, com um fundo comum. Se cada diocese quiser agir por si, não vale a pena e a Igreja ficará a perder com isso. Felizmente há gente séria e conhecedora que está a propor soluções à Igreja e ao Grupo Vita, apontando modelos que já existem noutros países, pelo que não será por falta de conhecimento e de propostas bem fundamentadas que os bispos não agem. Veremos qual será a decisão final.
O que está por cumprir
Comecei este texto a dizer que a Igreja não está no destino, mas sim a caminho. É um longo e doloroso caminho, mas como todos, só se faz andando. Não é certamente nem mais longo, nem mais doloroso, do que o caminho trilhado pelas vítimas de abusos sexuais.
Contudo, não queria terminar sem chamar a atenção para uma das propostas da Comissão Independente no seu relatório final. Na página 458, a primeira proposta para a Sociedade em geral fala da necessidade de um estudo alargado sobre o tema dos abusos sexuais de crianças em Portugal, com uma amostra estatisticamente representativa de toda a população e sua respetiva caracterização, para melhor conhecimento da realidade, abrir uma ótica comparativa (por exemplo, entre abusos dentro e fora da Igreja) e estruturação de medidas preventivas e de resposta multidisciplinar.
Este estudo, semelhante ao que foi feito pela Comissão Independente, mas alargado a toda a sociedade, permitiria perceber até que ponto este problema dos abusos sexuais de menores e pessoas vulneráveis existe noutras instituições, incluindo as instituições públicas. Ficaríamos com melhor ideia dos abusos que existem na escola pública, nas universidades, no Sistema Nacional de Saúde, entre elementos das forças de segurança, nas instituições tuteladas pela Segurança Social, nas organizações desportivas e culturais, etc.
Um ano depois da publicação do relatório sobre a única instituição em Portugal que parece estar a fazer alguma coisa para se reformar e saber a verdade sobre a sua condição, alguém tem conhecimento de movimentações para se fazer este estudo mais alargado, ou sequer sectorial? Pois, eu também não.