Ao longo dos últimos dias assistimos à surpreendente notícia de que o Irão lançou ataques, incluindo com mísseis balísticos e drones, contra alvos no Iraque e no Paquistão.
Trata-se de uma escalada inesperada na situação no Médio Oriente e também extraordinariamente perigosa. Basta recordar que o Paquistão é uma potência nuclear, e o Irão, se não é ainda, para lá caminha.
O que é que se passa? E o que é que a religião tem a ver com o assunto? Como veremos, muito.
Xiitas v. Sunitas
O primeiro ponto tem a ver com a divisão entre sunitas e xiitas, os dois grandes ramos do Islão. Mundialmente os sunitas são a vasta maioria, com cerca de 90% da população, mas olhando mais especificamente para o Médio Oriente a coisa não é tão evidente. O Irão é a grande potência xiita, e tem um regime teocrático que usa a religião para se legitimar. Mas depois existem vários países na região que têm significativas minorias, ou até maiorias de xiitas.
Já os sunitas são maioria em quase todos os países do Médio Oriente, excepto o Irão, obviamente, e o Iraque. As grandes potências sunitas são por um lado a Arábia Saudita, e por outro – já fora do Médio Oriente, mas na fronteira e com o olhar cada vez voltado para leste, a Turquia.
As grandes rivalidades na região – excluindo para já Israel, mas já lá vamos – são entre países sunitas e xiitas, e por vezes entre forças dessas duas correntes do Islão dentro dos países, que agem a mando de potências externas. Assim, a Arábia Saudita está actualmente em conflito com os houthis, do Iémen, que são xiitas e agem sob ordens de Teerão, e a Turquia apoia os grupos rebeldes na Síria, que são na maioria sunitas e de tendência jihadista, enquanto o Governo da Síria é dominado pelos alauitas, que são um ramo do xiismo.
Até agora, apenas uma coisa parecia capaz de unir os dois ramos, o ódio a Israel e, por extensão, aos seus apoiantes ocidentais, nomeadamente os Estados Unidos. Mas até isso parece estar agora em causa.
Uma aposta ganha de Israel?
Durante anos Israel tem sido o alvo preferido da retórica do Irão. Contudo, os dois países não partilham qualquer fronteira, por isso a coisa resumia-se quase só a isso, retórica. Entretanto o Hezbollah, a força xiita no Líbano, começou a atacar Israel e o Irão está prestes a tornar-se um país nuclear, o que apresenta um sério risco para Telavive. Pior, o Irão tornou-se um dos principais patrocinadores do Hamas, o grupo armado que domina a Faixa de Gaza, e terá mesmo ajudado a treinar, armar e financiar os ataques de Outubro que levaram à mais recente guerra.
Quando Israel ripostou contra o Hamas, invadindo Gaza numa operação que já causou dezenas de milhares de mortos e está a deixar o território praticamente inabitável, pensou-se que estava a cometer um erro estratégico, colocando todo o resto do Médio Oriente – e uma boa parte da opinião pública do ocidente – contra si. Contudo, aquilo a que estamos a assistir agora pode indicar uma aposta ganha por Israel, na medida em que a tensão entre xiitas e sunitas isola o Hamas, dependente do Irão, e isola o próprio Irão na região. Note-se que no seguimento da guerra em Gaza nenhum país sunita veio em auxílio do Hamas, mas pelo contrário houve dois atentados dentro do Irão promovidos por forças sunitas radicais, uma com sede em Idlib, na Síria, outra com sede no Paquistão. Foram alvos desses grupos, supostamente, que o Irão atacou.
Claro que isto levanta a pergunta: porque é que estes grupos atacaram o Irão precisamente nesta altura em que o estado xiita estava a usar os grupos que apoia e controla para atacar Israel e alvos ocidentais, através dos ataques a navios no Mar Vermelho? Terá havido algum encorajamento por parte desses governos ocidentais, ou de Israel, nesse sentido?
O que sabemos é que há dias a Arábia Saudita já veio dizer que poderá vir a reconhecer Israel, desde que o problema da Palestina seja resolvido. Parece uma condição impossível, mas os sauditas também não disseram o que consideram ser uma justa resolução, portanto está tudo em aberto. Esta aproximação de Ríade mostra claramente que os países sunitas estão a compreender que não é Israel que é o seu grande inimigo na região, pois não os ameaça directamente, e que já não têm a ganhar com os apelos à solidariedade muçulmana com a Palestina, uma vez que o Irão os ultrapassou pela direita e assumiu essa causa para si.
Os próximos tempos poderão, por isso, revelar um novo equilíbrio de poderes no Médio Oriente, com os países sunitas a aceitar tréguas e até colaboração com Israel, e por extensão com o mundo ocidental, face a uma ameaça comum.
E se o Irão “flipar”?
Uma das ironias em toda esta situação é que o Irão é, nalguns sentidos, um tigre de papel. Não quero de forma alguma subestimar a sua importância e a sua força, mas sim sublinhar que essa força está toda concentrada no topo de uma pirâmide que está a ficar com as bases corroídas.
Meio século de um regime fundamentalista e retrógrado em Teerão conseguiu o feito de virar uma grande parte da população contra essas mesmas ideias. Nas grandes cidades iranianas as pessoas não querem saber de religião, de xiismo e de rivalidades com os sunitas. Não obstante toda a sua conversa antiocidental, os iranianos comuns estão profundamente ocidentalizados e a sentir cada vez mais o peso da falta de liberdade a que estão sujeitos. O Irão é, por isso, um barril de pólvora que já foi posto à prova várias vezes, mas que mais dia, menos dia, pode mesmo explodir e ver desaparecer o regime dos ayatollahs, sendo estes substituídos por uma nova realidade muito mais ocidentalizada, que recupera o lugar que o Irão já ocupou no mundo, em termos de cultura e de desenvolvimento. Mas isso ainda não aconteceu, nem se sabe se vai acontecer, por isso os ayatollahs ainda lá estão e são eles que estão quase a obter armas nucleares.
E por fim a Rússia
Claro que a Rússia também é para aqui chamada. Moscovo tem sido o grande aliado internacional do Irão. Juntos combateram na Síria e na Líbia e há muitos que acreditam, como eu, que o ataque do Hamas teve dedo de Moscovo, precisamente para provocar uma resposta israelita e levar os americanos a dividir com Israel o apoio militar que têm dado a Kiev.
Aqui, claro, não é qualquer solidariedade religiosa que está em causa, mas apenas uma solidariedade de autocracias, até porque a muito significativa população muçulmana da Federação Russa é de maioria sunita. Mas se a situação no Médio Oriente deixar de ser uma guerra de procuração com rebeldes submissos a Teerão a lançar mísseis contra bases americanas e navios internacionais, tornando-se em vez disso uma guerra aberta entre estados, então a Rússia só tem a perder, porque o precioso apoio militar que tem recebido do Irão provavelmente vai cessar. Aos russos e aos iranianos interessa, por isso, ir longe, mas não longe de mais. E esse é sempre um jogo muito perigoso de se jogar.