Tenho acompanhado com muito interesse, e reflectido muito sobre a questão da acusação ao Pe. Mário Rui Pedras. Este é um caso muito difícil e que envolve muitas vertentes e penso que pode ser mais fácil tentar separar as águas e ver os pontos um por um, para depois tirar algumas conclusões. O ponto de partida aqui é este caso porque entretanto se tornou público, mas na verdade podia aplicar-se a qualquer um dos, até agora, 14 padres que se encontram cautelarmente afastados do ministério no âmbito desta questão dos abusos de menores.
1. O anonimato da denúncia
Por regra, o lugar das cartas e denúncias anónimas é o caixote do lixo. A maioria de nós foi educado nesse sentido, e bem. No meu trabalho estou farto de lidar com críticos e comentadores anónimos, e se no início isso ainda me preocupava e dava algum troco, deixei de o fazer. Quem tem uma opinião a partilhar deve estar disposto a dar a cara por ela, caso contrário não deve esperar ser atendida. O anonimato é muitas vezes o escudo dos cobardes.
Contudo, há excepções. Há alturas em que existe um genuíno medo de represálias. Se eu sei que os meus vizinhos do lado traficam heroína e têm armas automáticas em casa se calhar prefiro fazer uma denúncia anónima do que dar a cara e arriscar a vida. Ao contrário do que tenho lido por aí, é evidente que a denúncia anónima pode ser um ponto de partida para uma investigação, desde que contenha um mínimo de informação que o permita.
Nos casos dos abusos sexuais há ainda outra questão que é o trauma causado pelo abuso, que pode tornar muito difícil ou até inconcebível ao abusado dar a cara publicamente por aquilo que lhe aconteceu. Temos de compreender isso. Em relação à Comissão Independente e ao relatório, a única forma de garantir que o maior número possível de vítimas se chegaria à frente era assegurar-lhes o anonimato. Claro que existe aqui um risco muito grande, que é precisamente a possibilidade de alguém se aproveitar do sistema para poder dificultar a vida a um padre. Mas isso não é de agora, nem é culpa da Comissão Independente. A pessoa que fez esta denúncia podia perfeitamente tê-la feito em qualquer momento à comissão diocesana, ou podia ter ido para a imprensa, e o resultado seria provavelmente o mesmo, desde que desse indícios minimamente credíveis, o que não é difícil.
Concluindo, o anonimato da denúncia não descredibiliza automaticamente a mesma, nem neste, nem em qualquer outro caso.
2. A substância da denúncia
Tudo o que sabemos agora sobre a substância da denúncia é que refere um abuso alegadamente ocorrido na década de 90, quando a alegada vítima se encontrava no 8º ano, numa escola na periferia de Lisboa.
Com base nestes dados posso concluir com razoável certeza que este testemunho não está publicado no relatório, pelo que só os membros da comissão é que terão acesso ao testemunho completo e, possivelmente, as autoridades do Patriarcado, caso a Comissão tenha partilhado com eles os dados.
De resto, aparentemente a denúncia não inclui quaisquer outros dados: nem datas certas, nem o nome da vítima ou de outras vítimas, nem testemunhos, nem nada.
Se assim for, então tenho dúvidas de que o Patriarcado deveria ter pedido o afastamento cautelar do Pe. Mário Rui, ou de qualquer outro padre nesta situação, e deve-se perguntar porque razão o fez, mas já lá vamos. O ponto a que quero chegar para já é que a única fonte que temos para dizer que não existem quaisquer indícios sólidos é, neste momento, a palavra do acusado. Ora, não pretendo de forma alguma pôr em causa a honestidade do Pe. Mário Rui, mas tal como não se pode condenar alguém com base apenas numa denúncia anónima infundada, não se pode ilibar alguém só com base na sua versão daquilo que é a acusação.
Não temos falta de exemplos de pessoas que foram acusadas, por vezes com indícios muito fortes de culpa, que proclamam alto e bom som a sua inocência. É um mecanismo típico de defesa numa situação destas o agressor armar-se em vítima de conspirações e cabalas. Não estou, como é evidente, a dizer que é isso que o Pe. Mário Rui está a fazer, estou apenas a avisar que a sua versão dos factos e a sua proclamação de inocência não podem chegar para o ilibar, e que nós (eu e a esmagadora maioria das pessoas que me lêem) não estamos em posição para poder determinar se ele está a dizer a verdade ou não, porque não podemos ter a certeza de que conhecemos os dados todos.
3. O comunicado
Ontem escrevi uma curta nota no mail semanal que envio, em que dizia que se fosse eu a aconselhar o Pe. Mário Rui, não teria sugerido ele escrever aquele comunicado, ou, caso insistisse em escrever o que quer que seja, teria sugerido que o fizesse noutros tom e noutros termos, manifestando apenas a sua confiança de que a investigação que agora se abre irá demonstrar a sua inocência e pedindo orações aos fiéis naquele que é um momento difícil.
Já recebi muitas opiniões contrárias, que agradeço, porque este é um assunto complexo, como já disse, e embora possa ter opiniões não é fácil nem aconselhável ter certezas.
O que me parece é que o padre acusado, neste caso, tornou o caso muito público de forma desnecessária. Parece-me ainda que todas as teorias da conspiração, de que esta foi apenas uma forma de tentar atingir André Ventura, ou de o castigar por ter aberto a paróquia aos tradicionalistas, ou por ser muito próximo do Patriarca, são extemporâneas, na medida em que essas associações apenas se estão a fazer porque ele decidiu tornar a situação pública.
Posso não estar a par dos factos todos. Pode ser que o seu nome estivesse prestes a ser divulgado na imprensa e ele se quisesse antecipar, o que é compreensível – embora, mais uma vez, eu o tivesse feito com um comunicado diferente – ou pode ser que no caso dele fosse tão evidente que o seu afastamento temporário da paróquia seria associado a esta situação que ele achou por bem tranquilizar os seus paroquianos. São tudo factores a ter em conta e que podem ter influenciado a sua decisão.
4. “É tudo mentira porque o Pe X é o maior”
Tenho visto muito esta reacção agora com o caso do Pe. Mário Rui. Claramente há muita gente que tem por ele a maior estima, a maior simpatia e a maior admiração. Eu não o conheço pessoalmente, mas também por isso não tenho razões para duvidar da sinceridade de todas essas opiniões que as pessoas têm sobre ele.
O que devemos ter em conta, contudo, é que isso vale muito pouco. Deus queira que o Pe. Mário Rui, e outros na sua situação, estejam inocentes. Mas eles não são inocentes pelo facto de nós gostarmos deles.
A história, incluindo a história muito recente da Igreja, está cheia de exemplos de pessoas aparentemente incríveis que afinal não o eram. E para que não pensem que estou a fazer os outros de parvos, digo-vos que a minha reacção quando soube da morte de Jean Vanier foi escrever um post no meu blog a dizer “Santo Subito”. Só que depois veio-se a saber que ele passou grande parte da sua vida a abusar sexual e psicologicamente de mulheres adultas que se confiavam a ele como director espiritual.
Como é óbvio, isto não quer dizer que todas as pessoas carismáticas são manipuladoras. Só convém é lembrar que só porque eu acho que uma acusação é inconcebível, porque a pessoa parece ser tão recta e admirável, não quer dizer que assim seja.
5. A decisão de o afastar. Cedência à pressão?
Vamos partir do princípio que tudo o que o Pe. Mário diz no seu comunicado é verdade, e que não existem quaisquer indícios na acusação contra ele nivelada. Porque é que ele foi afastado, então?
O que as regras dizem, nestes tempos de tolerância zero em que vivemos, é que basta haver uma denúncia credível para que o padre seja temporariamente afastado enquanto se faz uma investigação preliminar.
Obviamente, a lei não pode ser muito mais específica que isso, mas é possível que os indícios, ainda que parcos, fossem suficientes para considerar a denúncia credível.
Por exemplo, o padre Mário Rui desempenhou algum cargo em escolas na periferia de Lisboa na década de 90 que o tenham colocado em contacto com alunos do 8º ano? Isso pode ser suficiente.
Atenção, não o suficiente para o condenar, mas o suficiente para o afastar enquanto se faz uma investigação mais rigorosa. Isto é o cumprimento das regras da Santa Sé.
Houve um caso semelhante em Setúbal há uns anos. Um padre foi acusado de ter abusado de uma criança numa creche, ou num infantário paroquial. Sendo pároco, era credível que ele estivesse na escola e que estivesse em contacto com as crianças da mesma. Imediatamente o padre foi afastado enquanto o caso era investigado mais cabalmente. Logo se percebeu, contudo, que no dia indicado o padre não tinha estado na escola, logo não podia ter praticado os abusos de que era acusado. O caso foi arquivado. Todo o processo foi seguido, as regras cumpridas, prevaleceu a justiça e houve transparência quanto a isso.
A pergunta que se pode fazer é: caso a diocese saiba, neste caso em particular, que esta investigação não tem quaisquer pernas para andar, porque não há denunciante identificado ou identificável, nem testemunhas, nem nada que se pareça, então deveria ter aberto sequer uma investigação preliminar e afastado cautelarmente o padre? Sem conhecer os dados, não conseguimos ter uma opinião mais fundamentada, mas é claramente uma questão subjectiva. O Patriarcado pode sempre escusar-se, dizendo que está a cumprir as regras à letra.
Agora, não podemos descartar a possibilidade de a pressão mediática, e a pressão colocada por alguns membros da Comissão Independente, terem levado o Patriarcado a sentir que neste caso não tinha outra possibilidade senão agir, afastando o Pe Mário Rui e outros padres que estejam numa situação idêntica.
Em relação a isto, tenho dito que não se compreende a diferença de critérios usados por Laborinho Lúcio e Daniel Sampaio em relação às listas entregues aos bispos e ao Ministério Público. Se no caso do MP tiveram o cuidado de dizer que entregaram nomes, mas estão cientes de que provavelmente nada resultará na maior parte dos casos porque não há indícios para investigar ou para condenar, porque é que não fizeram a mesma ressalva naquele?
6. E o direito ao bom nome?
Este é, em larga medida, o cerne da questão. O Pe. Mário Rui, e tantos outros como ele, têm obviamente o direito ao bom nome, como temos todos.
Também é evidente que o nosso direito ao bom nome não pode ser uma barreira a investigações e eventuais acusações.
Mas é claro que existe aqui um conflito, quando a acusação parece ter poucas ou nenhumas bases e os danos feitos ao bom nome são potencialmente irreparáveis, ou pelo menos de muito longa duração.
Não há aqui soluções perfeitas, e sempre se soube que poderia haver padres falsamente acusados. Aliás, temos tido vários casos nos últimos anos na Igreja de padres que foram acusados e depois veio-se a ver e as acusações eram infundadas, bem como outros casos em que depois de investigada, a pessoa em causa foi ilibada. Houve acusações falsas antes do Relatório da Comissão Independente e haverá depois. O facto de potencialmente haver casos infundados também no âmbito do relatório não é, por isso, um factor determinante para avaliar a credibilidade e o valor do trabalho feito no geral pela Comissão.
O que faz a diferença aqui são mesmo as regras internas da Igreja que são mais rigorosas que as leis civis e que prevêem o afastamento cautelar de pessoas sob investigação mal exista uma denúncia credível, sendo que a fasquia para a credibilidade não tem de ser muito alta, basta que a denúncia seja possível.
Porque é que isto é assim? Não será injusto? Em muitos casos será injusto, mas a Igreja determinou que há aqui um bem maior a preservar, que é a segurança de potenciais vítimas. Não pode de forma alguma acontecer – como infelizmente aconteceu muito no passado – um homem manter-se em funções, com acesso a menores de idade, consumando abusos sexuais sobre novas vítimas enquanto é investigado. Para eliminar esse risco sacrificam-se alguns direitos do denunciado, removendo-o cautelarmente de funções enquanto o assunto é investigado de forma mais rigorosa.
Trata-se de um caso clássico de conflito de direitos. Mas convém recordar que quem decidiu que seria este o modus operandi não foi a Comissão, nem o Governo, nem a maçonaria, nem uma qualquer organização secreta judaica, foi a Igreja. (E bem sei que para alguns dos meus leitores a Igreja moderna está irremediavelmente infiltrada por maçons e membros de organizações secretas judaicas, mas enfim…).
E se a Igreja o fez, é porque considera que a segurança dos fiéis, especialmente os mais vulneráveis, tem primazia sobre o direito ao bom nome dos seus sacerdotes que, enquanto imagem de Cristo, devem estar disponíveis para sofrer e dar a vida pelas suas ovelhas.
É muito fácil dizer estas coisas do conforto da minha sala? Admito que sim. Mas isso não muda a realidade. É bom que os padres e os bispos compreendam que é essa a realidade em que vivemos agora. Sim, estamos todos – e estão eles em particular, pelos cargos que desempenham – numa posição em que podemos vir a ser falsamente acusados de um crime horrendo, e ter de viver com isso para o resto da vida, ainda que o caso seja arquivado ou que sejamos ilibados.
De quem é a culpa? É de muitos, mas é em grande parte das gerações anteriores que quando confrontados com estes casos trataram-nos como inconveniências em vez de terríveis atentados à verdade, ao Evangelho e à dignidade de crianças muito amadas por Cristo e criadas à imagem de Deus.
Há inimigos exteriores que se deliciam com tudo isto? Há, sempre houve e sempre haverá, mas são como abutres que estão agora a banquetear-se nas carcaças que nós próprios semeámos cá dentro.
7. O que é que andamos aqui a fazer?
E com isto chego ao último ponto: O que é que andamos aqui a fazer? Porque é que estamos nesta discussão? Porque é que houve Comissão Independente, porque é que houve relatório? Porque é que andamos a discutir o que fazer com casos de padres acusados, com mais ou menos credibilidade? Qual é o objectivo de tudo isto?
O objectivo de tudo isto é a regeneração e conversão interior da Igreja. O objectivo é isto tudo ser a chapada na cara de que precisávamos – e como alguns bispos precisavam! – para acordar e perceber que é preciso mudar muita coisa. É preciso mudar normas, é preciso mudar práticas, é preciso mudar mentalidades. Muito tem sido feito, graças a Deus, mas há muito ainda por fazer.
Num mundo em que ninguém parece pestanejar perante a sexualização precoce de crianças e adolescentes, em que num dia nos dizem que é proibido proibir, mas no dia seguinte querem nos obrigar a assinar um termo de consentimento antes de ter relações sexuais com alguém, a Igreja está a ser chamada a purificar-se e a ser para o mundo um farol de sanidade, um local onde as crianças e pessoas vulneráveis podem estar em segurança.
A Comissão Independente, as listas, os casos individuais de padres acusados, falsa ou acertadamente, são absolutamente secundários em relação a este objectivo final.
Isso não implica que abandonemos a verdade e sacrifiquemos o justo com o pecador. Pelo contrário, a verdade nos libertará e é preciso que os processos e as investigações sejam marcados pelo rigor e pela justiça.
Mas sabemos, porque sempre foi assim e agora não é excepção, que nesta purificação alguns sofrerão injustamente, serão vítimas de calúnia, terão o seu bom nome posto em causa e será pouco o consolo que derivam do facto de os seus processos serem arquivados ou mesmo de virem a ser ilibados. Esses, certamente, receberão a sua devida recompensa de quem a dá sempre com justiça e verdade.
Mas temo que essas injustiças apenas se possam evitar sacrificando os mais fracos e vulneráveis, que são sempre as vítimas preferidas de predadores. E esse é um sacrifício que a Igreja não pode voltar a fazer, porque ainda está a pagar o preço de o ter feito demasiadas vezes.
Quanto a todos os padres Mário Rui que temos por aí, em Portugal e noutros lados, que Deus os ajude e console. Que sejam inocentes e que essa inocência se possa comprovar e que os culpados sejam justamente condenados. Que os nossos bispos tenham a fortaleza e a coragem de levar a cabo processos rápidos, rigorosos e justos e que algum dia, talvez, o resto do mundo tenha a coragem de seguir o exemplo da única instituição que está de facto a tentar extirpar este problema do seu seio, por mais doloroso que seja.