Há uma falha desnecessária e lamentável no relatório, que diz respeito ao número de padres identificados através dos testemunhos.
A confusão deriva do facto de o relatório nunca nos dar os números isolados, optando por apresentar tabelas que são difíceis de interpretar, e que ainda por cima têm erros.
Já explico a metodologia, mas para quem não tem paciência para ler mais, apresento já as minhas conclusões.
TOTAL DE VÍTIMAS: >611 – O > deve-se ao facto de alguns dos dados serem apresentados assim.
De todos os números, este é talvez o menos fiável, porque as tabelas não permitem identificar se há duplicações entre o número de vítimas identificadas pelo relatório, o número de vítimas apresentados pelas dioceses/institutos religiosos/instituições e o número de vítimas identificadas pelo Grupo de Investigação Histórica.
TOTAL DE ABUSADORES: 497 – Este número resulta da soma de todos os abusadores identificados pela comissão, pelas dioceses/institutos religiosos e instituições, menos os casos duplicados, que são 35.
TOTAL DE PADRES/RELIGIOSOS ABUSADORES: 413 – A soma total dos padres e religiosos identificados como abusadores nas tabelas é de 441. Contudo, embora o relatório não especifique se os casos duplicados são de padres, religosos ou leigos, há pelo menos 28 casos duplicados que só podem ser de padres, logo o número de padres nunca pode ser superior a 413, podendo inclusivamente descer para 409, caso os quatro restantes casos duplicados incertos sejam todos padres.
TOTAL DE FREIRAS ABUSADORAS: 4
TOTAL DE LEIGOS ABUSADORES: 82 – Resulta da soma de todas as tabelas e a subtração de dois casos de duplicação que só pode ser de um leigo. O número pode descer para 78 se todos os restantes quatro casos duplicados incertos sejam todos leigos.
TOTAL DE ABUSADORES INDETERMINADOS: 8
Ora, os mais atentos poderão ter reparado que a soma de padres/religiosos, leigos, freiras e indeterminados dá 507. Como se explica esta discrepância? Há quatro abusadores duplicados que não retirámos a nenhuma das outras categorias, por não sabermos se são padres ou leigos. Subtraindo esses quatro, ficamos com 503. Os restantes seis, por incrível que pareça, devem-se a erros nas tabelas!
Assim, na tabela das dioceses Braga aparece com um total de 45 abusadores, subdivididos em 40 padres, 5 leigos e 1 indeterminado, o que na verdade dá 46.
Évora tem 10 abusadores, dos quais 10 padres e um leigo, o que dá 11.
Santarém tem 7 abusadores, incluindo 7 padres e 2 leigos, o que dá 9.
Viseu tem 7 abusadores, dos quais 7 padres e um leigo, o que dá 8.
Nas ordens religiosas masculinas temos os Capuchinhos com 2 abusadores, dos quais 2 são padres/irmãos e um é leigo, o que dá 3.
E, por fim, na Obra da Rua são dois abusadores, dos quais apenas 1 padre, o que obviamente dá 1.
Isto dá um saldo de seis abusadores (7 a mais e 1 a menos), o que, subtraído a 503 dá os tais 497.
Como é que sabemos que alguns dos duplicados têm de ser padres e outros têm de ser leigos? É simples. Veja-se o caso de Lisboa. A Comissão Independente recebeu relatos relativos a 66 padres e 10 leigos. A própria diocese fez chegar informaçao sobre 3 casos, todos padres e o Grupo de Investigação Histórica encontrou nos arquivos dados relativos a 8 casos, todos padres. Os casos duplicados aqui são 9. Dois desses estão entre os dados que chegaram através da diocese e outros 7 nos casos encontrados pelo Grupo de Investigação Histórica. Uma vez que a diocese e o GIH só encontraram casos relativos a padres, esses 9 casos duplicados só podem dizer respeito a padres.
Infelizmente, em casos como o CNE, em que há 4 padres e 15 leigos apontados entre os abusadores, e quatro casos duplicados, não é possível saber se os duplicados são todos padres, todos leigos, ou uma mistura.
Com isto, temos ainda mais uma questão a assinalar. Olhando para o número total de abusadores e para o total máximo de padres na lista, vemos que a percentagem de padres entre os abusadores é 83%, podendo descer até aos 82% se os quatro duplicados incógnitos forem todos padres.
Mas a Comissão não disse que só 77% dos abusadores eram padres? Mais um dado pouco claro. Vejamos com atenção o que diz o relatório sobre isto: “Na esmagadora maioria dos casos, os alegados agressores eram padres (77% dos casos). (…) O segundo estatuto mais comum é o de professor em colégio religioso (9,6%), situação não raramente associada à primeira, pois o professor é igualmente padre. Em terceiro lugar (4,5%), surgem os casos em que as pessoas agressoras eram membros de ordens religiosas diversas (abades, madres, frades, freiras, entre outros).”
Ou seja, estas percentagens significam relativamente pouco. Só porque 77% dos agressores foram identificados como padres, não significa que alguns dos que foram identificados como professores, ou até outros, não fossem igualmente padres.
Em conclusão, eu tenho defendido sempre o trabalho da Comissão, e não são estes detalhes que põem em causa o relatório como um todo. Mas é uma pena que nesta parte a Comissão Independente não tenha feito um trabalho mais rigoroso.